lunes, 27 de agosto de 2012

O lugar do Brasil no mundo - Nildo Ouriques


A burguesia brasileira não possui projeto nacional. O brado do ex-presidente Fernando Henrique – “exportar ou morrer” – numa imitação barata e descontextualizada da consigna de Churchill, revela a tendência à economia exportadora que o Brasil dependente e subdesenvolvido deve impulsionar.

18/8/10
Emir Sader acredita que “o Brasil mudou seu lugar no mundo”. Injusto dizer que tamanho otimismo é atributo de apenas uma parte importante da intelectualidade brasileira que aderiu ao governo Lula sem inibições. Na verdade, a ideologia de que o Brasil mudou seu lugar no mundo tornou-se bastante estendida e é compartilhado tanto pelo governo quanto por parte considerável da oposição. Diplomatas, jornalistas, professores universitários, sindicalistas e políticos profissionais, aceitam sem reparos sua inclusão no batalhão do orgulho nacional renovado. Muitos intelectuais com tradição na esquerda aceitam a hipótese sem restrições e inclusive setores mais à direita reconhecem – mesmo contrariados – esta suposta nova posição do país nas “relações internacionais”.

A suposição de que o Brasil “mudou sua posição no mundo” é uma ideologia que, como tal, possui certa correspondência com a realidade objetiva. De fato existem condições para que ela se estabeleça entre nós: em última instância e por mais contraditório que pareça, a suposta “nova posição” do Brasil no mundo é produto do aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento, a característica principal de nossa formação social.
 

Esta súbita exibição do orgulho nacional no período recente é uma conseqüência necessária da última onda expansiva da economia mundial que consagrou o lugar de países como o Brasil no sistema capitalista. Mas é preciso deixar claro: a despeito das aparências, o lugar reservado para o Brasil é aquele que tradicionalmente nos reservam os amos da humanidade: a periferia do sistema. A propósito, é preciso dizer que nenhum analista, mesmo o mais otimista, se atreve a dizer que o país deixou de ser subdesenvolvido ou dependente; é verdade que certas linhas de interpretação nos reservam o cômodo lugar de país semi-periférico, conceito que evita problemas tanto à esquerda quanto à direita, mas sobretudo, evita o reconhecimento de que o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” opera com lógica implacável.

A economia mundial cresceu de maneira vertiginosa até setembro de 2008, momento em que o sistema bancário faliu e importantes multinacionais do setor produtivo foram a bancarrota nos Estados Unidos e também na Europa. Antes desta data, a expansão da acumulação mundial favoreceu enormemente a acumulação de capital das economias periféricas, especialmente em alguns países que possuem abundantes recursos naturais e que haviam logrado certa especialização na produção de alimentos. Não há que negar evidências: de fato, para alguns países – o Brasil entre estes – as taxas de crescimento do produto eram expressivas, especialmente quando comparada com o ritmo exibido pelos países centrais; mas também a China, Índia, a África do Sul, a Rússia, para dar apenas alguns exemplos, revelaram indicadores que confirmavam a existência de uma fase expansiva que muitos julgaram sem precedentes. Os “benefícios” da conjuntura também alcançaram alguns países africanos e asiáticos que jamais foram considerados “estratégicos” na disputa pela hegemonia mundial, não sem graves conseqüências para seu futuro econômico e político.

As condições mundiais
Em certa medida era compreensível o entusiasmo na periferia capitalista com a fase expansiva da acumulação mundial. O período imediatamente anterior – décadas de oitenta e noventa – foram caracterizados pela CEPAL como “décadas perdidas” em referencia as baixíssimas (e acidentadas) taxas de crescimento do produto, com o correlato necessário de baixos salários e elevado desemprego, endividamento estatal, privatizações e internacionalização de muitas empresas das economias periféricas.
 

Para os trabalhadores, o período não poderia ter sido pior. Não somente porque as taxas de crescimento do PIB eram baixas, a formação bruta de capital fixo se mantinha estagnada e, via de regra, a taxa de desemprego era elevada; este período foi também – e talvez especialmente – marcado pela supressão de direitos trabalhistas importantes, fruto de conquistas históricas das classes subalternas. Quando estes direitos não foram simplesmente suprimidos, os trabalhadores também sentiram a deterioração dos serviços de saúde e da educação pública, sofreram com o aumento do tempo para aposentadoria, suportaram calados o aumento do grau de exploração da força de trabalho, medidas que foram impostas violentamente pelos capitalistas com apoio decisivo tanto de governos conservadores quanto de governos generosamente considerados “progressistas”. Também neste período, o caráter classista do estado, especialmente na periferia do sistema capitalista, revelou-se sem ambigüidades e muitas reivindicações conquistadas no árduo combate classista desapareceram com a mesma velocidade com que um sorvete derrete sob o sol no verão nos trópicos. Diante de tão adversa correlação de forças, os sindicatos mais fortes e organizados conseguiram a duras penas resistir, logrando, em poucos casos, algumas vitórias importantes. No entanto, esta será sempre uma época marcada por derrotas históricas dos trabalhadores, não apenas nas condições de trabalho mas sobretudo em termos de organização política e consciência crítica. Em poucas palavras: será um tempo marcado pela renuncia a luta pelo socialismo e no qual todo esforço dos trabalhadores se resumiu a sua reprodução como força de trabalho. Um período que poderíamos definir como de contra-revolução em escala global.

Após as primeiras turbulências da economia mundial em 2001-2, as condições melhoraram e os signos de que a acumulação retomava seu ciclo expansivo apareceram. Além da baixa nos salários, a desorientação sindical ajudou enormemente o ciclo de acumulação, da mesma maneira que a chamada “abertura” das economias nacionais – ou seja, a plena vigência da lei do valor em escala global – permitiu ao capital o acesso ilimitado a matérias primas. Estas condições, sempre necessárias para o processo de acumulação, vingaram até o grande colapso de setembro de 2008 quando a crise capitalista global derrubou os postulados que sustentam a neoclássica como teoria e o “neoliberalismo” como modalidade de política econômica. Mas a demanda por alimentos e matérias primas permaneceu como uma espécie de herança “positiva” daquele período expansivo, entre outras razões porque o grau de urbanização do mundo capitalista, a força da retomada produtiva das empresas multinacionais e o impulso de economias periféricas como a Índia e a China, seguiram exigindo mais alimentos e matérias primas. O paradoxo – aparente, como veremos – consiste em que, no Brasil, a onda expansiva da acumulação mundial restringiu claramente a possibilidade de “completar” o processo de industrialização, eterna reivindicação de economistas liberais-progressistas como Celso Furtado.

O “exito” do governo Lula, cujos números impedem a crítica convencional dos principais partidos de oposição (PSDB-DEM) precisamente no terreno em que se consideravam imbatíveis, produziu, o fenômeno que a imprensa chama de “desindustrialização”. Ao contrário do que se poderia supor, a chamada “desindustrialização” não é exclusivamente resultado dos erros de política econômica mas produto do protecionismo dos países centrais, da imensa força da revolução científico-técnica que ali se verifica e da elevação dos preços das matérias primas e produtos agrícolas. O exemplo mais significativo é o preço da soja – que tanto enriqueceu quanto fortaleceu o latifúndio no país – mas não é, certamente, o único produto. Em relação a 2005, “o aumento dos preços acumulados até abril de 2008, para o conjunto dos produtos básicos no mercado internacional foi aproximadamente de 65%”, indica estudo recente
 (1); na mesma direção, os preços dos metais cresceram 81% e os combustíveis 79%. O período corresponde precisamente ao início do segundo mandado do presidente Lula e a tendência favorável aos preços destes produtos ainda não sofreu um abalo significativo, mesmo após setembro de 2008. Os efeitos para o Brasil são mais que evidentes, mas não deveríamos nos deixar levar pelo otimismo ingênuo que atualmente a classe dominante promove, pois a origem dos sucessivos superávits comerciais revela um segredo que poucos estão dispostos a tratar: segundo o IEDI, entre 1980 e 2007, “a participação do setor industrial no valor adicionado total da economia brasileira recuou 6,2 pontos percentuais” (2). Esta tendência foi acentuada no período recente, pós setembro de 2008, como indica outro estudo do mesmo Instituto (3). No que se refere ao balanço de pagamentos, há muito tempo se sabe que a origem do “superávit comercial” se produzia a partir da exportação de produtos agrícolas e minerais, amargando imenso déficit na área de eletro-eletrônico, fármacos, química, equipamentos mecânicos, etc. No ano passado este déficit quase alcançou 44 bilhões de dólares e certamente crescerá ainda mais em 2010!

A economia política das relações internacionais
Neste contexto, as exigências para a diplomacia brasileira não foram desprezíveis. A transição entre a antiga subserviência do Itamaraty – com vitalidade até FHC – e a nova linha inaugurada por Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – no governo Lula – não pode ser entendida sem a análise crítica da economia política que orienta o desenvolvimento capitalista no Brasil desde 1994, ou seja, desde o estabelecimento do pacto de classe que sustenta o Plano Real. Por isso, o ativismo diplomático do atual governo na África, o protagonismo no Haiti (Caribe) e Honduras (América Central), como também o interesse real pela integração econômica latino-americana (América do Sul) anda par e passo com as iniciativas de empresas brasileiras que exploram as oportunidades abertas pela expansão conjuntural da economia mundial e o reforço da posição do Brasil na clássica divisão internacional de trabalho. Não se trata de uma mudança destituída de interesse, razão pela qual não compartilho da opinião que concluiu pela identidade completa entre FHC e Lula, como se ambos representassem simplesmente o mesmo projeto. Tampouco seria adequado concluir que estamos diante de uma “nova posição do Brasil no mundo”, pois as correntes que atam nosso país ao subdesenvolvimento e a dependência não são débeis ao ponto de serem suprimidas no curto tempo de dois governos. As forças que geraram o alinhamento automático da diplomacia brasileira às diretrizes de Washington não foram suprimidas e não poderão ocorrer enquanto o estado brasileiro for expressão do domínio da classe dominante nacional e internacional. O pacto de classe que sustenta a acumulação de capital desde 1994 exigiu um novo papel para a diplomacia brasileira, em que ela teria que ampliar, necessariamente, o estreito grau de autonomia que caracteriza sua atuação histórica. Contudo, observar neste movimento real uma independência quase completa que somente processos revolucionários podem de alguma maneira garantir, é simplesmente reforçar a apologia de setores da classe dominante sobre as possibilidades do Brasil no mundo.

Portanto, é esta dinâmica da acumulação mundial que permitiu o aprofundamento da dependência e, contraditoriamente, certa renuncia às ilusões desenvolvimentistas. Esta é a base objetiva do “orgulho nacional” que indica uma “nova posição do Brasil no mundo” e o elogio desmedido da diplomacia brasileira. A ampliação do grau de autonomia da política externa do governo Lula em relação ao imperialismo estadunidense é tão real quanto limitado. Mas é certamente incompreensível sem a análise da economia política que orienta a coalizão de classe que sustenta o governo Lula. Neste contexto, as conseqüências da política econômica considerada exitosa, não poderiam ser outras que a expansão da fronteira agrícola com sucessivos desastres ecológicos, crescente endividamento estatal e hegemonia do capital financeiro. A “superioridade” das antigas formulações de Celso Furtado reside no fato de que, como autentico liberal-progressista, sonhava com a conclusão da industrialização enquanto os atuais desenvolvimentistas já se dão por satisfeitos com o relativo – e passageiro – equilíbrio do balanço de pagamentos.

A consciência burguesa na periferia capitalista
A consciência burguesa em países periféricos não pode ser exuberante, razão pela qual o grito de alerta sobre o caráter perverso da modalidade de acumulação que sofremos se assemelha a lamento infantil. Enquanto a imprensa alerta para os efeitos supostamente indesejáveis da “desindustrialização”, organismos que expressam melhor os dramas da alma burguesa na periferia capitalista assinalam algo mais grave: a pauta de exportação do país implica em aprofundamento da “dependência tecnológica” em benefício exclusivo das empresas multinacionais. Contudo, os estudos do IEDI não podem tocar fundo no problema, pois algo mais grave acontece: como a burguesia utiliza o excedente econômico logrado neste período de prosperidade?

Um alerta sobre este problema foi feito – ainda que parcialmente – pelo IPEA, instituição de pesquisa do governo brasileiro. O estudo preliminar de Mansueto Almeida (4) indica que os vultuosos recursos do BNDES (aliás, com reforço do Tesouro Nacional) estão sendo utilizados para fortalecer ou formar grandes grupos empresariais privados na área de alimentos e recursos naturais. Ademais, o esforço da política industrial nacional, especialmente a partir de 2003, não rendeu resultados na direção de superar saldos comerciais negativos originados a partir de produtos de média e alta tecnologia; ao contrário, são precisamente os setores responsáveis pela drástica diminuição dos outrora mega-superávits comerciais. A expansão das empresas brasileiras no mercado mundial, ainda “baseia-se nos setores intensivos em recursos naturais e commodities”, afirma o relatório. Enfim, realidade bastante distante de um “novo lugar do Brasil no mundo”. Eu agregaria que os recursos do BNDES também foram utilizados para salvar grupos econômicos nacionais de suas aventuras na festa mundial dos derivativos cambiais que teve um nutrido capítulo nacional, obviamente “esquecido” pela imprensa. Grupos econômicos como Sadia, Votorantin, Aracruz, entre outros, sofreram perdas importantes nos negócios arriscados em que se envolveram e, como sempre, levaram a conta para o estado pagar. Não por acaso, após o resgate público do Banco Votorantim, Antonio Ermírio de Moraes, a patrono do grupo, abandonou sua coluna no jornal paulista onde, a conta gotas, alimentava a oposição. Transformar o vício burguês em virtude pública é um artifício tão velho e eficaz quanto os escritos de Mandeville.

Portanto, além de “salvar” grupos econômicos de suas aventuras com derivativos – o presidente do BNDES Luciano Coutinho havia proclamado inicialmente que a instituição não seria cemitério de empresas, embora mais tarde esqueceu o assunto – o excedente econômico tem sido utilizado de maneira desenvolta para consagrar a posição do Brasil no mundo como exportador de produtos agrícolas e minerais. Desde David Ricardo nada novo entre nós! Como vaticinou Engels em conhecido panfleto no ano de 1888, a Europa quer consolidar a grande indústria e uma imensa periferia agrícola em seu redor...

Conclusão
Neste contexto, impossível descolar o ativismo diplomático brasileiro recente da economia política que lhe sustenta. A direita política – PSDB paulista no comando – critica a expansão da diplomacia em países que considera insignificantes, mas o latifundiário exportador de soja sorri e hipoteca seu apoio ao governo Lula com suculentos negócios no continente africano; de quebra, o governo pode ensaiar apoio as “multinacionais brasileiras” que se dedicam ao rentável negócio de atender a demanda mundial por alimentos e matérias primas colaborando com o desastre ecológico e produtivo da África. Algumas empresas brasileiras estão buscando “oportunidades” no Haití – especialmente têxteis – quanto na África – especialmente grãos – para exportar ao mercado mundial onde possuem vasta força de trabalho sob regime de super-exploração. Enquanto a conjuntura mundial permitir, será possível ostentar o orgulho ilusório de que finalmente estamos ocupando um “novo lugar no mundo” quando na verdade a política oficial reforça nosso velho assento na periferia sistêmica, destinado a ofertar matérias primas para as empresas multinacionais dos países metropolitanos elevarem sua taxa de lucro exatamente num período crítico da acumulação mundial. Seria surpreendente se fosse distinto, pois sabemos qual a vocação da burguesia brasileira quando o assunto é o destino do Brasil no mundo. A burguesia brasileira não possui projeto nacional! O brado do ex-presidente Fernando Henrique – “exportar ou morrer” – numa imitação barata e descontextualizada da consigna de Churchill de início dos anos 40, revela a tendência a economia exportadora que o Brasil dependente e subdesenvolvido deve impulsionar.

Este é o perigoso terreno em que o tucanato e o petismo coincidem. Possuem, como diz o jornalismo, a mesma “agenda”. O petismo leva grande vantagem na disputa, pois na tentativa de realizar o ideário socialdemocrata na periferia capitalista, conta com melhores condições: amplos setores sociais, especialmente os mais explorados, experimentaram em carne própria a “insensibilidade social” do governo FHC. A recente conversão do candidato José Serra ao programa Bolsa Família é demonstração de que entenderam – talvez tardiamente em termos eleitorais – que a maioria da população na cabe no projeto socialdemocrata sem programas permanentes de “compensação social”. Mas a crueldade tucana em relação à maioria explorada da população revela também muito mais que a crônica “insensibilidade social” da classe dominante brasileira; na verdade, revela os limites estreitos que toda tentativa reformista – petista ou tucana – de mudar “a posição do Brasil no mundo” encontrará se não enfrenta as amarras do subdesenvolvimento e da dependência que condena milhões a condição de miséria e exploração e o Brasil, como nação, ao triste papel de um gigante com pés de barro.

NOTAS

(1) IICA, junio de 2008.

(2) Análise IEDI, 21 de julho de 2010.

(3) IEDI. Seis meses de crise: o impacto na indústria segundo a intensidade tecnológica, junho de 2009.

(4) Almeida, Mansueto. Desafios da Real Política Industrial Brasileira no Século XXI, Textos para Discussão, n. 1452, IPEA, Brasília, dezembro 2009.


Professor do Departamento de Economia da UFSC.

No hay comentarios:

Publicar un comentario