O Comuneiro
nº
14, março de 2012
O capitalismo
globalizado se encontra sem dúvida numa viragem, face à amplitude da crise que
ele próprio engendrou. E o altermundialismo que anunciara a catástrofe e
inspirara a necessidade da tomada de um outro caminho, também se encontra numa
viragem.
Desde o verão de
2007, a globalização da economia se parece mais a um castelo de cartas do que a
um edifício cuja construção fora dada como indestrutível e definitiva: o “fim
da História económica” se chamava “globalização” e, por natureza, ela teria que
ser uma “globalização feliz”. É certo que ela o foi, e o é ainda, mas para as
classes dominantes cujos rendimentos, património e poder ganharam alturas
incomensuráveis, enquanto que a imensa maioria dos trabalhadores de todos os
países viram as suas condições de vida se degradarem relativamente, e mesmo
absolutamente, em numerosos casos. Mas a crise das sociedades, sob os golpes da
finança, atingiu um ponto limite: as estruturas da economia tremem e o véu
ideológico que baralhava as suas representações se rasgou. A finança está nua e
ela não consegue criar uma nova roupagem sem reproduzir as causas do seu
desastre e daquele em que mergulhou as sociedades.
Os arautos da
globalização tiveram portanto que colocar em surdina as suas loas em favor da
eficiência dos mercados - embora a mais pequena bonança efémera lhes dê
novamente voz e arrogância - e um debate se iniciou à volta da sua antítese: a
desglobalização. Este debate tem a originalidade de não opor os fervorosos
adeptos da ortodoxia aos “antis”, mas englobar os economistas e políticos que
se tinham levantado contra a ditadura dos mercados financeiros, particularmente
aqueles que em França, à esquerda da esquerda, tinham combatido o projecto do
tratado constitucional europeu e o seu “clone”, o tratado de Lisboa.
Há vários meses,
tribunas de imprensa, artigos de blogs e livros colocaram na praça pública os
temas do proteccionismo, da saída do euro e da desglobalização (1). Quais são os problemas de fundo que colocam essas
propostas? Eles remetem essencialmente para a natureza da crise que assola o
capitalismo, ao quadro de regulação necessária e à questão da soberania
democrática.
A crise não é uma soma de crises
nacionais
Desde o princípio
dos anos 1980, as estruturas do capital foram reestruturadas de tal forma que
elas produzam a rentabilidade máxima dos investimentos e, sobretudo, das
colocações financeiras. A criação de “valor para o accionista” é a linha de
conduta que se impôs no mundo inteiro, enquanto a desvalorização da força de trabalho
era sistematicamente orquestrada e praticada, esta permitindo aquela, à medida
que a liberdade de circulação de que gozavam os capitais tornava possível a
colocação em concorrência dos sistemas sociais e fiscais.
É isto que se
designava pelo eufemismo de “globalização”: o relançamento do capitalismo à
escala mundial para remediar a uma crise da taxa de lucro que grassava na
charneira dos anos 1960-1970, a vitória das classes dominantes cujos activos
financeiros têm a primazia sobre os salários, as condições de trabalho e a
protecção social, além da obrigação imposta às estruturas de regulação de se
conformarem daí para a frente com as exigências dos mercados.
A finança exige
taxas de remuneração anuais de 15 a 20 por cento; o sistema bancário é inteiramente
privatizado para colocar a criação monetária ao serviço quase exclusivo da
especulação e da reestruturação permanente do capital; as aposentadorias e a
segurança na doença são condenadas a terminar nas garras dos fundos de pensão e
das companhias de seguros; os orçamentos públicos são constrangidos à
austeridade para poder baixar a fiscalidade que pese sobre os ricos e passar a
esponja nos défices bancários.
Duas décadas foram
suficientes para erguer este andaime, cuja fragilidade está à medida da sua demência:
desde meados da década de 2000, a taxa de lucro cessa de subir nos Estados
Unidos e o crédito concedido aos pobres para paliar as insuficiências dos
salários não é mais suficiente para absorver a sobreprodução industrial. A
crise está lá e se propaga à velocidade da circulação dos capitais. A explosão
das dívidas públicas tem portanto a sua origem (2), não em despesas públicas e sociais estruturalmente demasiado
elevadas, mas nas políticas de abaixamento da fiscalidade progressiva, no
endosso à colectividade das dívidas privadas e nos planos de austeridade que
provocam as mesmas hemorragias a que se referia Molière: “Clysterium
donare, postea seignare, ensuitta purgare” (3).
Por outro lado, não
há razão de falar propriamente de crise grega, crise irlandesa, crise
portuguesa, crise espanhola, etc.. A crise não é uma soma de crises nacionais
que se desencadeariam apenas pelos problemas específicos internos a cada país;
nesse caso então teríamos de indagar porque razão elas se manifestavam
simultaneamente.
A crise é desde logo
e directamente reportada a um capitalismo chegado à “maturidade” mundial, sendo
que a lógica da criação de valor para o accionista - sem falar do accionista
especulador – foi levada ao seu paroxismo porque tudo estava destinado a se
transformar em mercadoria, desde a produção de bens e serviços de base até à
saúde, à educação, à cultura, aos conhecimentos, aos recursos naturais e ao
conjunto da vida. Esta colocação da sociedade - das sociedades - sob o domínio
da finança produziu uma crise em que cada dimensão reforça a outra: dimensão
financeira, económica, social e ecológica. O mito da capacidade da finança em
engendrar riqueza e estabilidade se afundou e a crença na autonomia da finança
em relação ao sistema produtivo se revelou completamente falsa.
A globalização não
se reduz portanto à livre troca de mercadorias, ou seja, à sua circulação.
Trata-se do processo de produção e de realização do valor (4). É a razão pela qual podemos estimar que a finança “autonomizada”
foi alcançada pela lei do valor, ou seja, por um duplo constrangimento, hoje
indissociável: é preciso extrair valor do trabalho, o qual não pode ser
espremido até ao infinito, sobre uma base material que se degrada ou que se vai
tornando rarefeita. A crise financeira tem portanto, subjacente a ela, a
sobreprodução capitalista e o impasse de um modelo de desenvolvimento.
Um dos principais
argumentos dos partidários de esquerda da desglobalização consiste em imputar
as destruições de empregos e a desindustrialização dos países ricos à
globalização. “Até metade dos anos 1990, os ganhos de produtividade nos países
emergentes não permitiam modificar a relação de forças com os países
dominantes. No entanto, após meados dos anos 1990, observamos ganhos de
produtividade muito importantes em países como a China ou em países da Europa
de Leste. A partir daí, várias actividades produtivas abandonam os países
industrializados” (5). Não poderia haver melhor prova de que a inversão da
relação de forças entre a classe dominante e os assalariados, nos países
industrializados, é anterior de pelo menos quinze anos à emergência em força da
China.
Tomando em conta
apenas o exemplo francês, a deterioração da parte salarial no valor
acrescentado [à volta de 5 pontos de valor acrescentado bruto das sociedades
não financeiras, em relação a 1973, e perto do dobro, em relação a 1982 (6) ] e o aumento rápido do desemprego se efectuam durante
a década de 1980. Os níveis então atingidos (muito baixos para a parte salarial
e muito altos para o desemprego) não serão mais modificados, salvo durante o
curto período de 1997 a 2001. É portanto exacto dizer-se que a concorrência das
forças de trabalho, que se acentuou ao longo dos últimos anos, reforçou as
posições adquiridas pelas classes possuidoras, mas é falso ver nos países
emergentes a causa primordial da degradação salarial nos países avançados.
Indirectamente, Jacques Sapir confirma aliás, ele mesmo, esta constatação,
observando que a correlação entre salários e produtividade “se interrompeu
brutalmente em 1981 até 1997” (7).
Este autor
caracteriza o período seguinte como “a segunda vaga da contra-revolução
conservadora” através da “deflação salarial importada” (8) que afecta as fracas remunerações dos operários e dos
empregados, enquanto que os altos salários atingem progressões muito fortes,
nomeadamente porque eles, de facto, incorporam elementos da remuneração do
capital. Estas tendências contraditórias sobre os salários, cada vez mais
polarizados, aparecem disfarçadas na estabilidade aparente da parte salarial
global no valor acrescentado, ao longo das décadas de 1990-2000.
No final das contas,
durante o longo período aberto pelas políticas neoliberais, as coisas são
contrastadas e não obedecem a uma visão uniforme. A violência de classe do
neoliberalismo se traduz, com efeito, no seio dos países ricos, por uma
repartição capital / trabalho favorável ao primeiro e por uma modificação na
repartição interna da massa salarial. Mas este segundo aspecto tem tanto a ver
com a posição social que ocupam os altos quadros das empresas, pela sua
competência técnica, como com o “dumping social” exterior, do qual são vítimas
os assalariados em baixo na escala.
Daí decorre ser
necessária alguma prudência teórica para evitar que um conflito de classes seja
transformado num conflito de nações, prudência que Frederic Lordon considera
como “destinada à inanidade” porque, diz ele, “as estruturas da globalização
económica colocam [os assalariados chineses e os assalariados franceses]
objectivamente numa relação de antagonismo mútuo - contra o qual nenhuma
denegação terá efeito” (9). Embora Frédéric Lordon negue estabelecer um primado
entre o antagonismo de classes e o antagonismo de nações, a solução
proteccionista que ele propõe consiste de facto a dar prioridade ao segundo.
Ora, a natureza sistémica da crise capitalista mundial remete para a relação
social fundamental do capitalismo e põe em dúvida a capacidade das populações
conseguirem uma saída do sistema pela via nacional.
Mais ainda, a
solução proteccionista olvida as fortes contradições que têm que defrontar cada
uma das fracções das burguesias europeias. O verão de 2011, com suas graves
dificuldades financeiras, ilustra este facto de forma eloquente. Os Estados
estão encarregados de fazer pagar a crise às populações; este é o factor
unificador das classes dominantes. Mas, por um lado, nenhum governo quer (nem
pode) tomar o risco de assumir as consequências de um incumprimento (“défaut”)
em relação às dividas soberanas, o qual poderia se propagar amplamente a partir
do momento em que rompesse o primeiro elo. Todos eles condenam assim suas
economias à recessão. Por outro lado, os bancos - incluindo o BCE- estão sobre
a corda bamba, pois que a dinâmica da especulação de que fazem parte os coloca
em posição delicada em caso de desvalorização massiva dos títulos públicos que
eles detêm. Como compreender esta situação face aos próprios interesses dos
detentores do capital?
Podemos fazê-lo se
não perdermos de vista que a globalização é muito mais do que uma globalização
comercial e financeira; ela é também produtiva, de tal forma que os grandes
grupos multinacionais se preocupam pouco das trajectórias económicas nacionais (10). A questão dos espaços pertinentes de regulação e de
luta contra a crise é portanto crucial.
Que espaços de regulação face a uma
crise mundial
A questão aqui é que
as estratégias políticas dizem respeito, ao mesmo tempo, aos escalões
nacionais, continentais e mundial. Foi nos Estados Unidos da América, centro de
origem da crise mundial e, sobretudo, na Europa, bastião da ortodoxia
monetária, que as dívidas públicas explodiram, em razão das próprias políticas
praticadas: no seio da União Europeia domina o tríptico formado pela baixa da
fiscalidade para os sectores privilegiados, o pagamento pelos estados de
dívidas privadas, sem contrapartidas, e uma austeridade mortífera. É nesse
contexto que tem lugar uma discussão sobre a oportunidade - para um país por
demais fragilizado pela crise, submetido fortemente à especulação - de sair da
zona euro, e sobre a instauração do proteccionismo.
O objectivo de
retomar margens de manobra em termos de taxa de câmbio, que a moeda única fez
desaparecer, pode ser atingido pela restauração da moeda nacional,
desvalorizando-a em seguida em relação ao euro? Não é seguro que as vantagens
momentâneas compensem os inconvenientes. Entre esses, há que considerar o facto
de que a dívida, em euros, será revalorizada. E uma desvalorização da moeda em
10 a 15 por cento não cobriria as diferenças de custo entre as indústrias dos
países do centro e aquelas dos países da periferia mundial ou europeia. De tal
forma que Jacques Sapir pensa que a inflação “imporá desvalorizações regulares
(todos os anos ou em cada 18 meses) cujo objectivo será manter constante a taxa
de câmbio real” (11).
Vê-se bem que
construir um projecto de transformação social sobre a repetição anual de um
programa de desvalorizações não tem sentido. De todas as formas, uma
desvalorização apenas produz efeitos em termos de competitividade externa se os
outros países não imitarem aquele que desencadeou o processo proteccionista.
Esta solução, por um lado, releva de uma estratégia unilateral e, por outro
lado, tem poucas possibilidades de resolver problemas sociais que não procedem
principalmente da concorrência de países estrangeiros mas sim da violência das
relações sociais impostas no plano interno. É um hábito corrente criticar a
subvalorização do yuan chinês para explicar os desequilíbrios mundiais, mas não
se tratará de um subterfúgio para exonerar de responsabilidade as políticas
neoliberais?
Frédéric Lordon
recusa a ideia de que haveria um problema de governo mundial e fustiga a
“quimera”(12) das instituições internacionais
fortes. Estaremos de acordo com ele, se se tratar de rejeitar as manipulações
acerca da suposta “governança mundial” ou de condenar os fracassos e as
procrastinações do G8, do G20 e de outros conciliábulos dos governos
dominantes. Todavia, existe um problema real por superar: o da construção de
uma regulação mundial.
Aliás, o período que
tanto Frédéric Lordon como Jacques Sapir citam como exemplo é aquele do
pós-guerra, marcado pela regulação de tipo keynesiano inaugurada em Bretton
Woods, embora as medidas decididas em 1944 não estivessem à altura do que
Keynes preconizava sobre a moeda mundial e o retorno ao equilíbrio das balanças
de pagamentos.
Dois factos
decisivos mostram a urgência de uma regulação, sem esperar que o capitalismo
seja abolido ou simplesmente confinado.
O primeiro concerne
a agricultura que é hoje caracterizada pela desregulamentação geral do comércio
agrícola, tendo como consequências, nos países do sul, a captação das melhores
terras para as culturas de exportação em detrimento das culturas para o mercado
interno, a baixa da procura solvível enquanto que as necessidades aumentam, e a
extrema volatilidade dos preços de base mundiais. Como poderemos imaginar que
cada país possa lograr uma relativa autonomia e instaurar uma soberania
alimentar se os mercados agrícolas não forem rigorosamente enquadrados, à escala
mundial, para retirar os produtos agrícolas (e, para além deles, todas as
matérias primas) do domínio da especulação e das incertezas do mercado?
Uma
“renacionalização” das políticas agrícolas na Europa (se as tentativas da
Comissão tivessem êxito) não nos conduziria a uma guerra comercial ainda mais
acentuada? Isto porque, nesse momento, a União Europeia promove as suas
exportações de cereais enquanto que os Estados Unidos congelam 30 milhões de
hectares, e a Nova Zelândia aumenta as suas exportações de leite para
beneficiar do tímido esforço europeu de controlo da produção (13).
O segundo facto diz
respeito à luta contra o aquecimento do clima, a qual é obviamente uma questão
mundial. Ora, até o presente momento, os fracassos das negociações sobre o
após-Kyoto, em Copenhaga em 2009 e em Cancun em 2010, são devidos
essencialmente aos conflitos de interesses entre os Estados mais poderosos, os
quais estão prisioneiros da sua dependência das exigências dos lobbies e dos grupos
multinacionais. A emergência de uma consciência cidadã para a salvaguarda dos
bens comuns, dotada de uma visão global, pode pesar sobre estas negociações,
por exemplo através do “Apelo da conferência mundial dos povos sobre a mudança
climática”, por iniciativa do governo boliviano, em Abril de 2010.
Na realidade, a
agricultura e o clima são reveladores da necessidade imperiosa de revolucionar
radicalmente o modelo de desenvolvimento subjacente à globalização capitalista.
Este aspecto é, na maioria das vezes, completamente ignorado pelos partidários
da desglobalização cuja referência principal continua a ser o modelo fordista
nacional (que é, de facto, melhor regulado do que o modelo neoliberal) mas que
engendrou o modelo produtivista devastador que acabou por se impor por toda
parte.
Não basta preconizar
a re-industrialização dos países… industrializados; há que reconsiderar o tipo
de desenvolvimento industrial. A relocalização de certas actividades é
indispensável mas, por um lado, não se pode recriar, com uma varinha mágica,
sectores industriais desaparecidos há décadas e, por outro lado, não se pode
pensar numa nova divisão internacional do trabalho sem um quadro de negociação
susceptível de tomar simultaneamente em linha de conta os imperativos sociais e
ambientais numa óptica mais cooperativa do que concorrencial. Nesse aspecto, é
paradoxal constatar que os desglobalizadores continuam presos a um esquema de
pensamento concorrencial. Estamos portanto confrontados com a definição da
maneira como possa se exercer a soberania democrática.
Finalmente, a soberania democrática
Como o problema é
colocado pelos partidários da desglobalização? “Seja qual for o nosso
pensamento, a solução da reconstituição nacional da soberania impõe a sua
evidência uma vez que ela tem, sobre todas as outras, o imenso mérito prático
de já estar lá, imediatamente disponível - evidentemente pela via de
transformações estruturais que a tornem economicamente viável: proteccionismo
selectivo, controle de capitais, controle político dos bancos, tudo medidas
perfeitamente realizáveis, se o quisermos” (14).
Os três níveis de
transformações estruturais propostos nesta citação são completamente
pertinentes. O problema está na “evidência”, no “imediatamente disponível”, no
“já estar lá”, quer dizer, o facto de supor o problema resolvido quando o autor
havia antes afirmado que a globalização tinha construído “um universo livre de
qualquer força política soberana” no qual reinava o lema de “sobretudo há que
dizer não ao Estado”. O “evidentemente pela via de transformações estruturais”
aparece, no melhor dos casos, como uma atenuante retórica.
Haveria também
alguma inconsequência em se desinteressar desta questão de ordem política ao
mesmo tempo que se afirma (com razão) que o processo de globalização teve como
consequência maior o facto de retirar aos cidadãos toda capacidade de pesar
sobre as decisões de organização da sociedade, numa palavra, o facto de
esvaziar a democracia da sua substância para confiar as chaves da casa aos
mercados financeiros.
O grande obstáculo
que os povos têm que superar hoje é, precisamente, o de reconstruir totalmente
a sua soberania e não simplesmente de reavivar uma soberania colocada em
hibernação. Efectivamente, tudo ou quase tudo está por terra, em termos de
soberania democrática. Pudemos constatar tal facto em França onde uma vitória
referendária sem contestação em 2005 foi confiscada, alguns meses mais tarde,
sem disparar um tiro.
A reconstrução /
construção da soberania está por fazer, tanto ao nível nacional como - no que
diz respeito aos europeus - ao nível regional, uma vez que o afrontamento com
as forças do capital não se joga mais unicamente (nem, talvez, principalmente)
ao nível nacional. E, quando fazemos uma abordagem não essencialista do “povo”,
mas como fruto de uma construção social histórica, isto não significa desprezar
a nação. Não se trata de negar a nação quando colocamos em dúvida a identidade
entre nação e povo uma vez que existem nações formadas por vários povos. Não se
trata igualmente de negar o Estado-nação pelo facto de constatar o seu carácter
contraditório: Estado ao serviço da classe dominante que, apesar disso, é
obrigado a proceder a certas arbitragens sociais.
Sem subestimar a
acção no seio de cada nação, é preciso lhe retirar qualquer carácter
nacionalista, buscando a cooperação com outros países para caminhar no mesmo
sentido, tendo-se em linha de conta que existem vários povos a resistir. A
contradição que é preciso superar é que, se a democracia se exprime ainda,
sobretudo, à escala nacional, as regulações e transformações a operar
(nomeadamente ecológicas) se situam para além das nações; daí a importância da
criação progressiva de um espaço democrático europeu. Uma vez que a crise não é
uma soma de crises nacionais, não haverá saída nacional da crise.
Permanece então a
questão de saber por onde começar o trabalho de desconstrução do capitalismo
neoliberal. Através de que meios podemos golpear - não este ou aquele país
estrangeiro - mas os verdadeiros e únicos responsáveis da crise?
A curto prazo, e de
maneira urgente, é preciso declarar ilegítimas a maior parte das dívidas
públicas e anunciar que elas não serão pagas, designando os países prioritários
a nível europeu, tendo em linha de conta as suas dificuldades. Basear estas
decisões sobre uma auditoria geral das dívidas públicas; proceder à
socialização de todo o sector bancário europeu. Restaurar uma forte
progressividade da fiscalidade. Não há, em relação a tais medidas, nenhuma
impossibilidade prática. Falta apenas a vontade política de “eutanasiar a
dívida”, na perspectiva da anulação de grande parte desta, face à gravidade da
crise (15).
A médio e longo
prazo, o processo a desenvolver é o da transformação radical do modelo de
desenvolvimento num sentido não-capitalista. A inviabilização das estruturas
actuais da finança é o primeiro passo, que poderia ser iniciado com a proibição
das transacções especulativas e com a taxação das transacções financeiras
restantes. Para além disso, a limitação estrita do espaço mercantil baseado na
busca do lucro é indispensável para que possam se desenvolver actividades não
mercantis ou orientadas para a satisfação das necessidades das populações,
preservando os equilíbrios ecológicos.
Que nome daríamos a
todo esse processo? Dizer, como Frédéric Lordon, que isto seria coisa simples,
pois à palavra “globalização”, bastaria colocar o prefixo “des”, é simples
demais. As protecções que são necessárias (do direito do trabalho, da segurança
social, da natureza…) não fazem necessariamente um sistema proteccionista. A
ideia de uma selectividade nos domínios a “desglobalizar” ou, pelo contrário, a
universalizar, é sem dúvida mais complexa de realizar, mas ela oferece a
vantagem de designar os verdadeiros alvos a atingir, em vez de bodes
expiatórios. Oferece ainda a vantagem de esboçar uma bifurcação sócio-ecológica
das sociedades - em vez de um retorno mítico às ilusões produtivistas – a
partir da qual se poderá construir, passo a passo, uma cooperação internacional
digna desse nome.
Pensamos que
conserva a sua validade aquilo que chamamos alterglobalização, que não
renuncia, nem uma polegada, na sua crítica à globalização, sem no entanto
acreditar na pertinência do seu aparente oposto.
(*)
Jean-Marie Harribey é um economista francês, mestre de
conferências na Universidade Montesquieu – Bordeaux IV. As suas pesquisas são
no domínio da crítica da economia política, os conceitos de valor e de riqueza,
o trabalho, a protecção social e o desenvolvimento sustentável. Entre 2006 e
2009 foi co-presidente da ATTAC-França,
com Aurélie Trouvé, sendo actualmente membro do seu conselho científico. É
membro da Fondation Copernic.
Entre os seus livros contam-se ‘L’économie économe, Le développement
soutenable par la réduction du temps de travail’(L’Harmattan,
1997), ‘Le
développement soutenable’ (Economica,
1998), ‘La démence sénile du capital’ (Le Passant Ordinaire, 2002) e ‘Raconte-moi
la crise’ (Le Bord de l'eau, 2009). É
colaborador habitual da revista ‘Alternatives Économiques’, em cujo sítio na rede mantém um blogue pessoal. O presente artigo foi originalmente publicado na revista ‘Le monde
diplomatique’, outubro de 2011. Tradução de Ronaldo Fonseca.
________________
NOTAS:
(1)
Entre os textos que, desde há um ano, abordaram este tema citamos: J.-M.
Harribey, ‘Il faut coincer les serial killers’, Dezembro de 2010;
Pierre Khalfa, ‘Vouloir quitter la monnaie unique est un mirage dangereux’, l’Humanité, 14
de Janeiro de 2011; Jacques Sapir, ‘S’il faut sortir de
l’euro…’, 6 de Abril de 2011; Thomas Coutrot, ‘Le programme Dany Boon’,
Politis, nº 1148, 14 de Abril de 2011; J.-M. Harribey, ‘Sortir de quoi? À propos de la discussion sur la sortie de l’euro
proposée par Jacques Sapir’, 28 de Abril de 2011; J.-M. Harribey, ‘Sortir de l’euro et sortie de route’, 2 de Maio de 2011; Jacques Sapir,
‘La démondialisation’, Paris, Seuil, 2011; Arnaud Montebourg, ‘Votez
pour la démondialisation’, Paris, Flammarion, 2011; Geneviève Azam &
alli, ‘La démondialisation, un concept superficiel et simpliste’, 6 de Junho de
2011; Frédéric Lordon ‘Qui a peur de la démondialisation?’, 13 de Junho de 2011; J.-M.
Harribey, ‘La démondialisation heureuse? Élements de débat et de réponse a F.
Lordon et a quelques autres collégues’; Frédéric Lordon, ‘Comment rompre avec
le libre échange. La démondialisation et ses ennemis’, Le monde
diplomatique, Agosto de 2011. Há uma tradução em língua portuguesa deste último
artigo neste mesmo número de ‘O Comuneiro’.
(2)
Ver Attac, ‘Le piège de la dette publique; comment s’en sortir’ Paris,
Les Liens qui libèrent, 2011.
(3)
Molière, ‘Le malade imaginnaire’, Troisième intermède, 1673.
(4)
J.-M. Harribey, ‘Crise globale, developpement soutenable et conceptions de la valeur, de
la richesse et de la monnaie’, Forum de la Régulation, Paris, 1 e
2 de Dezembro 2009.
(5)
Jacques Sapir, ‘La mondialisation est-elle coupable?’, Débat entre
Daniel Cohen et Jacques Sapir, Alternatives economiques, nº 303, Junho de 2011.
(6)
Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE), Rapport
Jean-Philippe Cotis, ‘Partage de la valeur ajoutée, partage des profits et écarts de
rémunérations en France’, 2009.
(7)
Jacques Sapir, ‘La démondialisation’, Paris, Seuil, 2011, op. cit., p. 71 e 79.
(8)
Ibid., p. 79.
(9)
Frédéric Lordon, ‘Comment rompre avec
le libre-échange, La démondialisation et ses ennemis’, op.cit..
(12)
Frédéric Lordon, ‘Comment rompre avec
le libre-echange, La démondialisation et ses ennemis’, op. cit.. Há uma
tradução em língua portuguesa deste artigo neste mesmo número
de ‘O Comuneiro’.
(13)
Ler Jean-Christophe Kroll e Aurélie Trouvé, ‘La politique agricole commune
vidée de son contenu’, Le monde diplomatique, Janeiro de 2009; Também
Aurélie Trouvé e Jean-Christophe Kroll, ‘Histoire d’un grand bond en arrière’
e ‘Rendre les outils aux États’, Politis, nº 1161, 14 de Julho de 2011.
(15)
Ler também, François Chesnais, ‘Les dettes illégitimes. Quand les banques font
main basse sur les politiques publiques’, Paris, Raisons d’agir, 2011.
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