O Comuneiro
Nº 14, Março de 2012
Resumo
Em três
terrenos se verificam as singularidades e contradições do imperialismo do
século XXI. A questão ideológica tem maior gravitação e a manutenção da ordem
global requer adesões por parte de sectores dos povos. Por esta razão o
americanismo substitui o racismo anacrónico do colonialismo. As mensagens
imperiais buscam suscitar a aceitação do status quo, mas a sua credibilidade está
afectada pelo uso da violência e a sua influência depende do contexto político.
O americanismo está, actualmente, sujeito aos mesmos contratempos do
neoliberalismo. Logra consentimento nas conjunturas de estabilidade mas se
desloca durante as crises. Cumpre um papel indispensável para a reprodução do
capitalismo, mas está corroído por numerosas inconsistências.
Na nova
gestão imperial, a organização militar já não é um atributo exclusivo de cada
estado. A delegação de atribuições a organismos supra-nacionais modifica uma
função tradicional do estado moderno. Actualmente, predomina um contexto
intermédio de maior mundialização e estados mais internacionalizados.
O modelo
associativo esclarece os vínculos entre as burguesias e as burocracias
imperiais e a visão estrutural clarifica o papel dos organismos
internacionalizados. Ambos os enfoques permitem superar as limitações do
enfoque instrumentalista e evitam o exagero transnacionalista.
A associação
mundial de capitais modifica o cenário de classes dominantes estritamente
nacionais e competitivas entre si. Mas não existem classes tradicionais
desvinculadas dos seus velhos estados. A análises dessas transformações exige
notar como a burguesia perpetua linhagens e absorve novos contingentes. É
importante contemplar todas as dimensões da dominação classista, considerando a
subordinação económica, a submissão política e o controle ideológico.
O termo
“imperialismo” está muito associado a disputas entre potências e a denominação
“império” alude a intervenções coordenadas das potências dominadoras. Convém
clarificar o sentido atribuído, em cada caso, ao conceito.
O
imperialismo contemporâneo difere significativamente do seu antecedente
clássico, nos terreno bélico, económico e político. A ausência de guerras
inter- imperialistas, a crescente mundialização e a gestão geopolítica conjunta
transformam por completo as características da dominação capitalista global.
A nossa
caracterização ressalta estas mudanças, destacando a singularidade e as
contradições que apresenta a opressão imperial no início do século XXI. Expomos
esta interpretação em debate com as teorias que postulam a continuidade do
esquema leninista e em polémica com as visões que consideram obsoleta qualquer
análise do imperialismo.
As
perspectivas ortodoxas e globalistas reflectem os erros de ambos os enfoques.
No primeiro caso, não registam as mutações qualitativas do período em curso e
no segundo caso exageram essas mesmas mutações. Estes erros impedem de perceber
as particularidades do imperialismo actual, em três campos de reflexão teórica:
o perfil das classes dominantes, o funcionamento do estado e as características
da ideologia.
Classes integradas
A
associação mundial de capitais modificou o cenário das classes dominantes
estritamente nacionais e competitivas que predominava no imperialismo clássico.
As burguesias alemã, japonesa, norteamericana ou francesa utilizavam no passado
todo o seu arsenal para disputar o predomínio no campo de batalha. Na
actualidade, grandes segmentos desses grupos desenvolvem negócios conjuntos e
apontam os canhões para outros alvos.
Mas o grau
de integração destes sectores varia significativamente em cada região e envolve
fracções e não totalidades destas classes. Trata-se de um processo em curso,
que se desenvolve no seio dos velhos estados nacionais, através de tensões
entre segmentos com distinto nível de actividade globalizada.
A
reconfiguração mundialista é muito significativa mas até agora tem um alcance
limitado. Implica equilíbrios entre classes nacionais e grupos
internacionalizados e se encontra muito longe da transnacionalização completa.
As transformações em sectores das burocracias não adoptam a mesma tónica no
conjunto dos capitalistas. Estas mudanças envolvem um importante segmento de
dirigentes e funcionários mas não o grosso dos proprietários das grandes
firmas.
O cenário
actual diverge portanto do contexto nacional competitivo descrito por Lenine
mas não se identifica com o curso associativo previsto por Kautsky. Há maior
integração do que a observada pelo líder bolchevique, mas não atinge a dimensão
cooperativa imaginada pelo dirigente socialdemocrata.
O perfil
mais cosmopolita que caracteriza amplos sectores da burguesia coexiste com o
militarismo e com o carácter não estável do sistema. Existe maior associação do
capital internacional, mas isto em nada significa uma paz perpétua como
concebia o teórico do ultra-imperialismo. Como a integração se realiza através
dos velhos estados e não através de uma base multinacional, o capitalismo
continua corroído por múltiplas tensões geopolíticas.
É
importante registar a mudança em curso e seus limites. A associação
internacional dos capitalistas é um processo contraditório e tendencial.
Transformou significativamente a estrutura nacional competitiva do imperialismo
clássico mas não criou classes dominantes transnacionais desgarradas dos seus
velhos estados. Há um novo status de classes integradas mas que não se amalgamam por completo.
Este
perfil é coerente com a natureza da burguesia como sector competitivo governado
por mecanismos colectivos. Os capitalistas constituem uma classe social que
incluiu historicamente uma ampla variedade de continuidades e mudanças, para
adaptar-se ao curso da acumulação.
À
diferença da nobreza, a burguesia segrega e agrega. Perpetua linhagens e
absorve novos contingentes. Recorre à separação competitiva e à absorção
inclusiva. Por um lado recria privilégios estáveis e limita a mobilidade social
através da hereditariedade. Por outro lado, coopta novos grupos para a
administração dos benefícios (1).
As classes
capitalistas necessitam estabilidade para assegurar a sua reprodução e evitam
as transformações abruptas. Mas modificam permanentemente a sua conformação
interna para reproduzir os negócios e incorporam ao seu âmbito todos os
sectores que se amoldam às exigências da rentabilidade.
Este
equilíbrio entre continuidades e renovações desemboca em um sistema de
dominação ampliada. A classe capitalista não se reduz a um punhado imutável de
proprietários dos meios de produção. Ela se reconfigura periodicamente mediante
a incorporação de novos segmentos.
Este
processo conduziu, por exemplo, no após guerra, à inclusão das novas camadas
gerentes, surgidas do próprio processo de concentração e centralização do
capital. Esta incorporação envolveu todos os funcionários que realizam tarefas
essenciais para a continuidade do sistema (coerção, persuasão, controlo,
vigilância). Foram assimilados ao pólo dominante e participam no processo como
possuidores e como expropriadores do trabalho alheio.
Os
capitalistas ampliam a sua composição geral com este tipo de absorções de
sectores necessários para valorizar o capital. Estes segmentos (compostos por
altos dirigentes) cumprem funções estratégicas no controlo do processo de
trabalho e asseguram a reprodução do lucro. Cumprem um papel muito diferente da
actividade puramente técnica, desenvolvida por outro tipo de assalariados
(profissionais) (2).
Definições ampliadas
Tomar
conhecimento destas modificações e utilizar um critério ampliado para
caracterizar as classes capitalistas é fundamental. Somente esta óptica permite
notar duas importantes características da associação internacional em curso. A
propriedade dos pacotes de acções começou a globalizar-se e os dirigentes de
grandes companhias adoptam certas modalidades cosmopolitas. Estas mudanças têm
seu desenvolvimento inicial no âmbito de estados nacionais diferenciados mas
indicam uma viragem para uma maior integração global.
Recorrer a
um critério ampliado de análise das classes dominantes é vital para entender a
actual situação intermédia dos principais grupos capitalistas. Estes sectores
já não actuam como blocos nacionais uniformes e tendem à associação
internacional, mas sem alcançar um status transnacional.
Existe uma
ampla variedade de altas burocracias globalizadas e um segmento mais restrito
de proprietários internacionalizados. Esta combinação contrasta com o cenário
invariavelmente nacional que apresentava o imperialismo clássico. Para analisar
correctamente esta mudança, é necessário reconhecer que a pertença à classe
capitalista se estende a ambos sectores e está formada pela soma dos
proprietários e funcionários do capital.
As classes
burguesas não se definem só pela propriedade dos meios de produção e pelo lugar
que ocupam na estrutura produtiva. Esse sector social inclui toda uma rede de
auxiliares que desenvolvem as funções de coerção, persuasão e administração,
requeridas para a reprodução do sistema (3).
Estes
critérios são importantes para evitar duas unilateralidades. As ópticas que
põem o acento na gestação de uma nova classe dominante transnacional tendem a
ressaltar apenas a globalização das funções, omitindo a persistência de
proprietários nacionais diferenciados. Aqueles que, pelo contrário, subestimam,
a partir de uma óptica ortodoxa, a existência de transformações relevantes,
acentuam esta segunda continuidade desconhecendo a primeira viragem. Em ambos
os casos se ignora o curso intermédio que prevalece no cenário actual.
Este
processo não se esclarece observando unicamente a dimensão económica da nova
configuração classista. A dominação dos poderosos se exerce também nos terrenos
político e social e a própria definição desta sujeição inclui os três campos. É
uma subordinação económica que os capitalistas impõem aos assalariados, é uma
sujeição política que a burguesia exerce sobre os trabalhadores e é uma
supremacia ideológica que mantêm os dominadores sobre os dominados (4).
Outro tipo de Estados
Diferentemente
do que sucedia no imperialismo clássico, a organização militar já não é um
atributo exclusivo de cada estado. Predomina uma gestão mundial coordenada e
hierarquizada, que transferiu uma parte das decisões bélicas a um comando
conjunto, liderado pelos Estados Unidos da América. Esta delegação modifica uma
das funções tradicionais do estado moderno. Muitas actividades de armamento e
treino militar ficaram de fora da órbita exclusiva do estado-nação.
Esta
transformação altera as regras da guerra em função da defesa nacional que
imperou durante a vigência do sistema westfaliano (1648-1943). Esses princípios
surgiram com o fim do feudalismo e a substituição do esquema de autoridades
sobrepostas (que regia a nobreza) pelo modelo de centralização militar que
adoptaram as monarquias absolutas e os regimes republicanos. Ao diluir-se, nas
últimas décadas, o horizonte das guerras inter-imperiais, se dissolveram os
velhos cimentos estatais das conflagrações entre potências.
Esta
transformação explica o novo perfil internacionalizado do gendarme
estadunidense. Ao concentrar a metade das despesas bélicas mundiais para
desenvolver operações à escala planetária, o estado norteamericano substituiu a
antiga estrutura da defesa nacional por um novo sistema de custódia imperial.
Este
estado articula o funcionamento interno e a coordenação exterior, mediante
dispositivos que as potências precedentes não tiveram. Define guerras hegemónicas
e agressões globais, através de uma rede de organismos presidenciais,
parlamentares e académicos, que seleccionam, mediante disputas de poder, as
distintas opções em jogo. O aparato estatal norteamericano serve os interesses
da burguesia norteamericana, mas também sustenta a ordem capitalista global.
Este papel
é exercido num cenário de convivência dos velhos estados nacionais com
distintas instituições regionais e globais, que assumem funções paraestatais.
Estes organismos eram inexistentes na era clássica, mas ainda não possuem o
perfil estável de instituições transnacionais substitutas.
As novas
estruturas multinacionais são militares (OTAN), diplomáticas (ONU), económicas
(OMC), financeiras (FMI) e informais (G8, G20) e estão rodeadas de numerosos equivalentes
regionais (União Europeia, MERCOSUR, NAFTA, etc.). Estes tipos de instituições
absorvem actividades que no passado eram património exclusivo dos estados
nacionais. A soberania absoluta sobre o território nacional se reduziu
significativamente com esta internacionalização do poder de decisão (5).
Este
processo de transferência de faculdades para os organismos extra-nacionais, já
não gera uma simples contraposição entre ganhadores imperiais e perdedores
vassalos. Agora regem novas relações de protecção militar e associação
económica entre as classes dominantes.
Esta
mutação redistribui níveis de soberania e rompe a coesão de estados construídos
ao cabo de longos processos de formação nacional. Este cimento é quebrado pela
globalização e foi profundamente solapado pelo neoliberalismo.
A mudança
em curso se desenvolve através de uma crescente penetração internacional nos
velhos aparatos estatais. Estas estruturas amoldam a regulação local da
acumulação aos novos requisitos impostos pela reprodução global do capital. Se
incrementam as garantias ao investimento externo, se reforçam os incentivos à
mobilidade financeira e se consolidam as condições de segurança para a
liberalização comercial. O mesmo estado nacional continua fornecendo os
cimentos jurídicos e materiais que o capital exige, mas este processo se
implementa mais amplamente com base em prescrições externas.
O
capitalismo global continua funcionando através de múltiplos estados nacionais,
sem criar um substituto mundial desses organismos. Mas a estrutura interior das
velhas instituições mudou. Elas já não sustentam só os interesses de classes
capitalistas rivais, mas também a associação internacional do capital. O
imperialismo actual opera num contexto intermédio de maior mundialização, com
estados mais internacionalizados.
Complexidade e autonomia
Os estados
imperialistas do passado e seus herdeiros actuais diferem em muitos aspectos
mas mantêm uma continuidade básica. São dispositivos ao serviço das classes
dominantes que operam como estruturas coercitivas para perpetuar uma ordem
social opressiva.
A polícia,
o exército e as prisões persistem como mecanismos centrais do poder burguês
para assegurar essa dominação. É importante recordar esse princípio básico face
a numerosas mistificações que apresentam o estado como um expoente do bem comum
e do interesse geral.
Este velho
credo foi reciclado pelos neoliberais que diabolizam a acção do estado quando este
cria limitações ao funcionamento do mercado. Esta atitude muda abruptamente
quando se trata de garantir os negócios capitalistas. Nessas circunstâncias
aplaudem as intervenções jurídicas e coercitivas do organismo estatal. Em
estabilidade, promovem privatizações e cortes nas despesas sociais; nas crises,
elogiam o resgate dos bancos e o socorro das empresas.
A omissão
do fundamento classista do estado é também muito comum entre os críticos do
intervencionismo estatal, os quais invocam as qualidades da sociedade civil,
como espaço de diálogo, tolerância e realização humana. Nesses elogios é comum
esquecerem-se de que no universo societal impera a desigualdade gerada pela
exploração capitalista. A órbita estatal confirma esta iniquidade, mediante a
acção de polícias, juízes e funcionários que garantem a ordem vigente. A
sociedade civil regula a dominação económica e o estado organiza a
dominação política.
Todas as
concepções que divorciam a análise do estado das suas raízes classistas impedem
que se compreenda a dinâmica actual deste organismo à escala imperial. Esta
instituição apresenta um funcionamento mais complexo e autónomo do que o seu
precedente clássico mas corresponde aos mesmos interesses das classes
dominantes. O desconhecimento deste fundamento torna estranha qualquer
indagação sobre o tema. A gestão económica mais colectiva do imperialismo
contemporâneo e a protecção militar mais internacionalizada, se implementam ao
serviço dos poderosos. Mas requerem o concurso de instituições estatais, com maior
grau de flexibilidade e independência do que as suas equivalentes de princípios
do século XX.
Estes
traços são visíveis, por exemplo, no gendarme norteamericano (como garante
global do capital) e na União Europeia (como entidade que estabeleceu a convergência
de camadas burocráticas com a fusão das empresas desta região). Os funcionários
de ambas as instituições mantém uma relação de maior associação com os grandes
grupos industriais e financeiros.
Por um
lado, o aparelho militar norteamericano gera frequentes conflitos de interesses
com as firmas estadonidenses. Por outro lado, a unificação europeia obriga a
equilibrar interesses de companhias que não constituíram um capital continental
integrado. Em ambos os casos, os estados já internacionalizados devem
harmonizar interesses, que ultrapassam amplamente o raio nacional do
imperialismo clássico.
A
autonomia relativa do estado que impõe essa administração capitalista
contemporânea introduz maior distância, mas não divórcios, entre as classes
dominantes. A gestão do estado continua orientada para fornecer as condições
que o capital requer para reproduzir-se. Esta entidade não adquire um
auto-desenvolvimento desconectado do poder burguês. A alta burocracia
desenvolve o seu próprio caminho, mas através de uma relação privilegiada com
os proprietários das terras, das empresas e dos bancos.
Este tipo
de conexões entre os administradores directos do estado e seus principais
beneficiários rege a dinâmica do imperialismo contemporâneo. Estes vínculos se
verificam nos novos organismos globalizados (FMI, OMC, ONU) e nos velhos
estados mais internacionalizados. As novas burocracias podem antecipar as
condutas que o conjunto da burguesia ainda não amadureceu. Entre os dois grupos
existe uma complementaridade, o que permite que o aparelho de estado se
desenvolva com as suas próprias regras, sem afectar a marcha dos negócios.
Os cimentos teóricos
A
compreensão das características do estado imperial exige que se supere as
visões instrumentalistas deste organismo, como se fosse uma simples ferramenta
da burguesia. Estes enfoques predominaram nas análises do imperialismo clássico
e tiveram o mérito de esclarecer o interesse de classe subjacente nas
confrontações inter-imperialistas do século passado.
Estes
enfoques permitiram refutar as teorias convencionais, que atribuíam as
conflagrações à “ânsia do poder”, ao “desejo de glória” ou a “ideais
patrióticos”. Esta desmistificação da competição inter-imperial permitiu
colocar a nu as causas das guerras tormentosas que ensanguentavam os povos para
enriquecer os poderosos.
Mas essas
caracterizações que iluminaram a função do estado nas situações extremas de
conflagração inter-imperial tornaram-se insuficientes após a segunda guerra
mundial. Não serviram para ajudar a compreender o papel desta instituição nos
períodos de estabilidade. A visão instrumental traz apenas um ponto de partida
para estudar este problema. Este esclarecimento inicial deve complementar-se
indagando sobre as múltiplas e cambiantes funções que cumpre o estado em cada
etapa da acumulação.
Superar a
herança instrumentalista é indispensável para captar as características do
estádio imperial contemporâneo. Esta instituição opera através de
procedimentos, mediações e mecanismos muito variados. Dado que internacionalizou
o seu raio de acção sem gerar estruturas transnacionais uniformes, torna-se
necessário indagar as modalidades de um sistema múltiplo de estados que se
globalizou.
O modelo
associativo, que expuseram alguns pensadores marxistas nos anos 1970, é muito
útil para encarar esta análise uma vez que permite esclarecer os vínculos
actuais entre as burguesias e as burocracias imperiais. Este esquema nos dá
conta das relações de correspondência e conflito que mantém ambos sectores.
Duas forças separadas coexistem em tensão na defesa de um mesmo sistema.
Esta
comunidade se reflexa nos próprios mecanismos de selecção do pessoal apto para
dirigir o estado burguês. Os administradores desse organismo mantêm estreitas
relações de parentesco e amizade com os capitalistas, defendem os mesmos
valores e exibem os mesmos comportamentos. Mas desenvolvem uma consciência mais
completa dos interesses do sistema, reflectindo a acentuada separação entre
esferas políticas e extractos económicos do regime vigente. A burguesia é uma classe
competitiva que necessita delegar o governo em um camada especializada, que
assegure o equilíbrio político e a segurança jurídica requerida pela acumulação (6).
A tese do
marxismo estruturalista também trás elementos importantes para a compreensão do
estado imperial. Esta visão analisou de que forma o estado assegura a
reprodução objectiva do sistema. Ilustrou o papel especial que cumpre este
organismo ao debilitar a resistência dos dominados e facilitar a coesão dos
dominadores para recriar as condições económicas e os cimentos legais que
necessita o capitalismo para desenvolver-se (7).
Estes
apontamentos contribuem para explicar, na actualidade, o papel central que
cumprem as instituições mais internacionalizadas do estado norteamericano. A
Reserva Federal, por exemplo, tornou-se decisiva na organização e na
continuidade das finanças globalizadas.
Embora os
debates do passado opusessem o enfoque associativo à visão estrutural, ambas as
visões são compatíveis e aportam os fundamentos para compreender a complexidade
do funcionamento estatal contemporâneo. Assinalam qual é a relação social
capitalista que subjaz em torno deste organismo e evitam particularmente a
apresentação weberiana da burocracia como um poder em si mesmo, divorciado das
prioridades económicas da burguesia.
Ideologia global
A
ideologia tem na actualidade maior gravitação na política imperial do que no
passado. A manutenção da ordem global requer suscitar a adesão de importantes
sectores da população. Esta adesão não se consegue apenas com o temor ou a
resignação que geram as agressões do Pentágono. A ideologia imperial
contemporânea recorre a exercícios de persuasão, para combinar a coerção com o
consenso, nos termos concebidos por Gramsci. O revolucionário italiano, revelou
como a dominação burguesa exige combinar o uso da força com modalidades de
consenso. Destacou que a sujeição dos oprimidos requer formas de consentimento
em relação aos poderosos, logradas por intermédio da cultura e da liderança
moral.
Gramsci
sublinhou que o uso exclusivo da violência só permite uma supremacia
coercitiva, que não assegura a reprodução da opressão classista. Assinalou que
unicamente o predomínio ideológico permite consolidar formas de hegemonia mais
duráveis. Este apoio se logra suscitando entre os oprimidos a aceitação dos
valores postulados pelos opressores. Esta ligação se constrói generalizando
identificações imaginárias e reforçando os mitos de pertença a uma comunidade
compartilhada, num contexto de maior incorporação política de sectores
populares ao sistema vigente (8).
Enquanto
estas formas de hegemonia operaram tradicionalmente, em marcos exclusivamente
nacionais, a dominação contemporânea exige impactos de ordem global. Funciona
através do americanismo como uma ideologia de todo o imperialismo colectivo e
não apenas como transmissão das crenças de cada burguesia à sua respectiva
população. Esta ideologia é propagada por uma potência dominante que exerce a
coação e difunde os valores que sustentam de certa forma a ordem vigente. Os
Estados Unidos da América buscam lograr ambos objectivos manejando o maior
aparelho bélico da história, propagando princípios capitalistas compartilhados
por todas as classes dominantes.
Neste
plano verifica-se uma diferença importante em relação às lideranças
precedentes. A combinação da primazia militar e ideológica norteamericana não é
equivalente às predominâncias anteriores das cidades italianas, do reino da
Holanda ou do colonialismo britânico (9).
Sendo
certo que cada período histórico incluiu a supremacia ideológica de alguma
potência, o americanismo tem, no entanto, um alcance global que não tiveram os
seus antecessores. Ele gera imitações e cumplicidades que o precedente inglês
nunca logrou. A ideologia imperial dos Estados Unidos da América contém um
componente inédito. É repetida no exterior como uma bíblia do capital e é
propagada no interior como um hino à igualdade de oportunidades. No mundo
exterior, oculta a sua defesa da exploração e na metrópole mistifica uma
tradição deturpada de ascenso social que se forjou (de uma certa forma) com a
escravidão dos negros e o genocídio dos índios.
Esta dupla
função explica a gravitação alcançada por essa ideologia entre as classes
dominantes. Mas qual é o seu grau de efectividade actual entre os povos? A
exaltação do lucro e da competição que tanto entusiasma as elites capitalistas,
não é espontaneamente compartilhada pela maioria da população. A credibilidade
destes princípios está directamente afectada pela violência que rodeia a acção
imperial.
O
americanismo não se reduz a magnificar as virtudes da livre empresa. Também
propaga a utilização das armas para garantir essas vantagens. Por essa razão, a
extensão da sua penetração entre as camadas populares depende do êxitos ou dos
fracassos de uma política que se impõe mediante brutalidades chocantes. Para
contrabalançar a indignação gerada pelos vandalismos imperiais haverá então que
ocultar a informação e manipular a opinião pública. Mas a viabilidade dessas
manobras varia em cada circunstância.
Certamente
as maiorias populares estão influenciadas pelas crenças dominantes, mas apenas
aceitam esses mitos quando parecem compatíveis com melhorias sociais e
económicas. Para que essas ideias se estendam ao conjunto da população, o custo
das aventuras imperiais deve ser imperceptível (ou tolerável) para essas
maiorias populacionais.
O reduzido
impacto que têm tido, até agora, entre a população norteamericana as agressões
contra o Iraque ou o Afeganistão (em comparação com o Vietname), é um exemplo
desta variedade de efeitos. A ideologia que justificou ambas invasões utilizou
as mesmas incoerências e se baseou nos mesmos argumentos pueris de iminente
perigo para a sobrevivência dos norteamericanos. Mas as condições em que
operaram essas crenças foram distintas.
Nos anos
1970, a crise do sistema político, a rebeldia social, as demandas democráticas
e o impacto das lutas anti-imperalistas desvelavam com maior facilidade as
inconsistências da propaganda imperialista. Além disso, o carácter
profissionalizado do exército permite actualmente fazer a guerra sem o
recrutamento obrigatório, o que antes conduzia, frequentemente, a uma atitude
de rejeição por parte da juventude.
A
ideologia, portanto, apenas condiciona, de maneira geral, um conjunto de
atitudes que se alteram em função das circunstâncias políticas. Nos Estados
Unidos da América estas condições influem directamente sobre uma cidadania
débil, que tem escassa participação na vida pública. Porém, esta população,
apenas apoia as aventuras bélicas no exterior desde que não afectem o seu nível
de vida e a sua sensação de segurança.
Tensões e
inoperâncias
As crenças
imperiais dominantes transmitidas pelos meios de comunicação têm um impacto
enorme. Estes dispositivos de propagação ultrapassam amplamente a influência
que exercia no passado o âmbito escolar, religioso ou familiar. Eles moldam até
níveis impensáveis o raciocínio da população.
Mas essa
penetração não é ilimitada. A coesão que as ideologias trazem aos grupos
dominantes não se projecta com a mesma intensidade sobre os sectores populares.
O carácter contraditório dessas crenças dificulta a sua interiorização na forma
de um senso comum. As crenças que os dominadores impõem ao conjunto da
sociedade coexistem com outras culturas e estão de certa forma limitadas por
suas próprias incoerências. Os mitos imperialistas operam como qualquer outra
modalidade de pensamento dominante. Influem sobre toda a sociedade mas têm uma
penetração diferenciada conforme se trata dos seus propulsores, aprovadores, ou
simples receptores (10).
Nas
últimas décadas, o americanismo contou com as mesmas vantagens e os mesmos
contratempos que rodeiam o neoliberalismo. Ambas as doutrinas lograram um
importante nível de aceitação e consentimento nas conjunturas de estabilidade
mas padeceram de fortes deslocações nos momentos de crise. As duas variantes
enfrentam a descrença quando as suas incongruências emergem à superfície. Um
sistema de competição que é obrigado a socorrer os bancos perde tanta
credibilidade quanto uma intervenção humanitária que perpetra massacres. As
duas modalidades do pensamento dominante estão, de certa forma, corroídas pelas
inconsistências que geram o funcionamento turbulento do capitalismo
contemporâneo.
A
ideologia imperial transmite crenças indispensáveis para a reprodução do regime
vigente. É um erro supor que a gravitação dessas ideias decresceu pelo impacto
de outros processos condicionantes da vida social. A expansão da técnica, o
reinado da informação, o declínio das paixões políticas ou o aumento da
descrença, não reduzem o peso da ideologia. Sem as crenças neoliberais, o
capital não poderia introduzir privatizações e sem o americanismo o
imperialismo não poderia sustentar as suas agressões militares.
As
ideologias cumprem um papel central. Operam como crenças, como cosmovisões e
práticas colectivas que as classes capitalistas necessitam desenvolver para
exercer a sua dominação. São pensamentos representativos dos interesses
dominantes que se transmitem através de crenças ilusórias e falsas consciências
da realidade. Legitimam poderes, eternizam um propósito opressor e bloqueiam a
aparição de alternativas.
Mas as
ideologias também estão sujeitas a múltiplas contradições pela variedade de
funções que cumprem e pela multiplicidade de planos em que devem actuar.
Intervém sobre sujeitos que compartem variados âmbitos de pertença (família,
sindicato, nação, religião), que estão regidos por crenças diferenciadas e se
encontram submetidos aos conflitos entre as distintas subjectividades em jogo (11).
Estas
tensões corroem directamente a ideologia imperial. A protecção da família choca
com o recrutamento dos seres queridos, os princípios religiosos de convivência
confrontam-se com a brutalidade da guerra, a defesa da pátria contradiz o apoio
a uma aventura no exterior.
O
americanismo está solapado pelo seu próprio desenvolvimento, mas a compreensão
destas contradições requer reconhecer a sua gravitação. Esta singularidade só é
perceptível se notamos as suas especificidades em comparação com o imperialismo
clássico e se compreendemos que ela constitui uma forma de pensamento ligada ao
poder estadunidense. O registo de ambos aspectos exige tomar distância em
relação à ortodoxia e ao globalismo.
Conceitos e terminologias
O
imperialismo do século XXI se transforma à medida das mutações que se registam
nas classes dominantes, nos estados e nas ideologias contemporâneas. O sistema
de dominação capitalista adopta a nível global novas formas para renovar a
exploração económica, a coerção política e a submissão cultural dos oprimidos.
A
associação internacional dos poderosos se direcciona em primeiro lugar para
incrementar a extracção da mais-valia aos trabalhadores. A concertação
geopolítica da gestão imperial busca, em segundo lugar, estabilizar estes
privilégios. Finalmente, a dominação que impõem os poderosos pretende
naturalizar essas injustiças, como um dado imutável da realidade.
O
imperialismo contemporâneo inclui estes três dispositivos para perpetuar a
dominação. É um conceito insubstituível para explicar como essa opressão se
exerce no plano mundial por meio da violência. Mas as modificações consumadas
nas últimas décadas são tão significativas que existem dúvidas sobre a
exactidão do velho termo de imperialismo para dar conta da nova realidade.
Como essa
noção se encontra muito associada com disputas entre potências pela repartição
do mundo, tornou-se corrente o uso da denominação de império, para aludir à
intervenção coordenada das potencias na sustentação do status-quo.
As
referências ao imperialismo costumam indicar a defesa de um interesse
específico do capital norteamericano, japonês, francês, etc.. Por outro lado,
as referências sobre o império aludem à sustentação do interesse colectivo dos
capitalistas. O importante é esclarecer o sentido que se confere em cada caso a
essa combinação de acções associadas e rivais.
O conceito
de império do capital oferece a melhor definição, uma vez que realça o carácter
imperialista pleno que alcançou a dominação mundial hierarquizada do sistema
vigente. Este termo melhora a denominação clássica de imperialismo (que pode
sugerir uma continuidade das confrontações inter-imperiais) e evitar a simples
alusão ao império (na interpretação descentrada e desterritorializada dessa
noção). Mas esses ajustes de linguagem são secundários. Na realidade, é válido
o uso de qualquer dos termos correntes, especialmente na denúncia da opressão
imperial e na batalha prática contra as agressões e saques que perpetram as
grandes potências.
Mas a
compreensão dessas resistências exige ingressar num outro plano da teoria. Há
que avançar mais além da problemática do imperialismo como articulação global
do capital. É preciso estudar o fenómeno em função da desigualdade que geram as
conexões entre o centro e a periferia. Para encarar esta reflexão as velhas
categorias são insuficientes. Há que estudar as semiperiferias, indagar da
emergência das novas potências e compreender o papel dos BRICS. Estes temas
incitam a desenvolver a segunda parte da nossa investigação.
(*) Claudio Katz (n. 1954) é
um economista marxista argentino, professor na Universidade de Buenos Aires,
investigador no Consejo Nacional de Ciencia y Tecnologia (CNCT) e membro do
grupo Economistas de Izquierda (EDI). É autor de numerosos textos de
interpretação do capitalismo contemporâneo e da crise económica global,
participando em encontros continentais de impugnação do livre-comércio, da
dívida externa e da militarização. Entre os seus livros, destacam-se ‘El porvenir del socialismo’ (2004), ‘Las
disyuntivas de la izquierda en América Latina’ (primeira
edição, 2008) e ‘La economía
marxista, hoy. Seis debates teóricos’ (2009).
Este artigo forma parte de um livro sobre o imperialismo contemporâneo a
aparecer proximamente. Tradução de Ronaldo Fonseca.
NOTAS:
(1) Ver este duplo carácter da
burguesia em: Pincon Michel, Pincon-Charlot Monique, Sociologie da la bourgeoisie, La Decouverte, Paris, 2000 (cap. 1, 2, 3).
(2) A classe dominante regista
processos constantes de mutação. Um retrato dessas mudanças na “nata” do
sistema é apresentado anualmente pela revista Forbes no seu ranking de
multimilionários (agora bilionários). Nas últimas duas décadas este quadro
registou a erupção dos novos líderes da informática no topo dos endinheirados e
também a diversificação da origem nacional de todo o club. Ver:
planetanegocios.com 6 de Maio de 2011.
(3) Este enfoque é proposto por:
Carchedi, Guglielmo: Frontiers
of political economy, Verso 1991 (cap. 2).
(4) Ver Garo, Isabelle. ‘La bourgeoisie
de Marx: les heros du marché. Bourgeoisie: état d’une classe dominante’,
Syllepse, Paris, 2001.
(5) Uma descrição desta
transformação é apresentada por Held, David, La democracia y el orden global, Paidos, Barcelona, 1995 (cap. 1, 2, 3, 4).
(6) Este enfoque foi desenvolvido
por: Milliband, Ralph, Debates
sobre el estado capitalista (cap. 1,
2, 3, 4 e 7), Imago Mundi, Buenos Aires, 1991. Milliband, Ralph, El estado en la sociedad
capitalista. Siglo XXI, México, 1980.
(7) Esta visão foi exposta por Poulantzas,
Nicos, ‘Las transformaciones actuales del estado’, em La crisis del estado, Confrontacion, Barcelona, 1977, e Poulantzas, Nicos, ‘Introducion al
estúdio de la hegemonia en el estado’, em Las clases sociales en el capitalismo actual, Siglo XXI, México, 1976.
(8) Gramsci, António, Notas sobre Maquiavelo, el
estado y la politica moderna, Nueva
Vision, Buenos Aires, 1972.
(10) Essa tese é desenvolvida por
Callinicos, Alex, Making
history, Polity Press. London, 1989 (cap.
4). Ver o enfoque oposto em: Abercrombie Nicholas, Hill Stephen, Turner Bryan
S, La tesis de la
ideologia dominante, siglo XXI, Madrid, 1987.
(11) Esta multiplicidade de
tensões é analizada por Jameson, Frederic, ‘El posmodernismo como lógica
cultural del capitalismo tardio’, em Ensayos sobre el posmodernismo, Imago Mundi, 1991. Eagleton, Terry, Ideologia, Paidos, Barcelona, 1997.
Therborn, Goran, La
ideologia del poder y el poder de la ideologia, Siglo XXI, Madrid, 1987.
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