lunes, 27 de agosto de 2012

A desglobalização e os seus inimigos - Frédéric Lordon (*)


O Comuneiro
nº 14, março de 2012

 Equilibradas sobre o fio da dívida pública, as economias ocidentais cambaleiam de crise em crise. Reuniões e cimeiras “extraordinárias”, em que se decide o destino de um país ou de um continente, são agora rotina para os responsáveis políticos, que, desde há três anos, assumem um papel de pronto-socorro da grande finança. Mas um outro caminho tem sido aberto, que suscita já temores e controvérsias: quem tem medo da desglobalização?

No início, as coisas eram simples: havia a razão - que se distribuía por círculos (com Alain Minc no centro) - e havia a pura insanidade. Os racionais estabeleceram que a globalização era a realização da felicidade, e todos aqueles que não tivessem o bom gosto de acreditar nisso deveriam ser internados. A “razão” confrontava-se, porém, com um ligeiro problema de coerência interna, pois que, votada ao ideal da discussão conduzida segunda as normas da verdade e do melhor argumento, nem por isso deixou de interditar todo o debate durante duas décadas, consentindo em que ele se abrisse apenas quando sobreveio o espetáculo da maior crise do capitalismo.
 O jornal ‘Le Monde’ não hesita em dar as “boas vindas ao grande debate sobre a desglobalização”. E introdu-lo (sem dúvida a título de “boas vindas”) com um artigo explicando que a desglobalização “é absurda”. Para equilibrar os pontos de vista, segue-se uma entrevista em que se certifica que ela é “reaccionária” (1) – com efeito, não se trata da mesma coisa e as duas opiniões mereciam aqui ser mencionados.
A temporalidade da macroeconomia fará com que os terríveis efeitos da mega-austeridade europeia se façam sentir realmente na França a partir do primeiro semestre de 2012. No cruzamento entre o delírio da finança, as políticas econômicas tutelada pelos mercados e as deslocalizações que prosseguem durante a própria crise, a globalização promete mostrar-se em seus mais ofuscantes trajes. Obrigará ela, enfim, o debate presidencial a colocar as verdadeiras questões? Ora, estas questões - desemprego, precariedade, desigualdades, perdas da soberania popular – reconduzem-se, por fim, sinteticamente, a uma só: a globalização. A rutura com as alternâncias sem alternativa toma então o simples nome de “desglobalização”.
O nome é simples mas o debate complicado. A disputa inteletual redesenha a paisagem política, com suas fraturas inesperadas e suas repercussões duvidosas, mas sempre contra o sindicato dos interesses dominantes: aqueles que não querem aparecer quando se põe a questão “a quem aproveita a globalização?”; aqueles que, depois de terem lutado para que o debate não tivesse lugar, lutam agora por que ele resulte numa aclamação.
É a um trabalho de historiador que faria apelo o recenseamento completo da panóplia dos argumentos globalizadores, dos mais estúpidos (a “globalização feliz”, que a esse título tem já assegurado o seu lugar na história) aos mais elaborados. Nenhum deles foi abandonado, entretanto, pois que todas as munições são boas para salvar o que possa ser ainda salvo. Por exemplo, repetindo o gesto do Paul Krugman de 1998 (ainda não «Prémio Nobel» da Economia), pedindo que “não culpem a globalização” – que ele aliás imita estigmatizando os “inimigos da globalização” (2) -, o economista Daniel Cohen toma ainda grandes cuidados em excluir do perímetro da globalização a financeirização. É verdade que esta última nunca foi muito cómoda de defender, e menos ainda se tornou a partir de 2007, pelo que é melhor deixá-la prudentemente à margem do debate.
Reconhecer-se-á aí um procedimento típico, há muito tempo em uso naquilo que poderíamos chamar de esqueda choramingona, muito empenhada em continuar a mostrar-se solidária com o salariato sofredor (ela é “de esquerda” ainda assim), deplorando com lágrimas ardentes que haja tantas desigualdades, precaridade e outras infelicidades, mas sobretudo decidida a não as relacionar com as respetivas causas estruturais: a liberalização financeira e o poder dos acionistas, a construção da Europa com base na escolha deliberada de expor a política econômica à disciplina do mercado financeiro, a concorrência livre e não falseada. Ou seja, todas aquelas coisas intocáveis que constituiram implicitamente (perdoem-nos esta audácia geométrica) o enquadramento do círculo da razão, do círculo dos que “querem ser alguém”. As coisas que devem ser ditas (contra o inferno das que não se podem dizer) para poder continuar apertando a mão do ministro, ser convidado para falar na televisão, ser consultado pelos partidos (de esquerda e de direita) – em uma palavra, ser amado pelas instituições.
Um pesadelo espetacular
Mas eis que a crise vem e arrasa tudo – trazendo consigo a terrível ameaça pelo ridículo. O inferno agora não são os outros, são os arquivos! E assim todos se afadigam por fazer esquecer as posições por si tomadas no passado (mas sempre sem sacrificar o “essencial”). Soou o dobre de finados para a Fondation Saint-Simon, a République des Idées, Terra Nova e outros belos exemplares de aparelhos ideológicos da globalização, que não terão similares seus para organizar a esquiva e a infleção de rumo. Resta, contudo, que os meios discursivos do passado têm que ser revistos. “Não falar no assunto” ainda era possível, até a globalização se transformar num pesadelo espetacular de grande público. Poderia aliviar-se a situação dos infelizes por meio de processos exclusivamente internos, cuidando de permanecer sempre dentro do “quadro”, sem questionar nada. As palavras de ordem seriam reforma tributária (certamente útil) e, acima de tudo, e-du-ca-ção!
Seriam educados os “perdedores” – para torná-los “competitivos por cima”. Ah! A educação, a economia do conhecimento, a knowledge-based economy, que é a alegria da Comissão Europeia: desculpa perfeita para responsabilizar os “idiotas” por se fazerem “empregáveis”, sem ter de mencionar as causas estruturais que destroem o emprego. Sem contar que esses agradáveis horizontes, necessariamente de longo prazo (pois que se trata de uma dura tarefa de formar imbecis), autorizavam a que nada se fizesse no entretanto. Mas eis que se torna difícil não falar mais das “coisas estruturais” conhecidas sob o nome de globalização, pois que os seus estragos, toleráveis enquanto se mantivessem silenciosos, tiveram subitamente o mau gosto de emergir com estrondo.
Claro que há um esforço a fazer para manter alguns dos velhos argumentos, como a tese da “tecnologia”, que imputa a infelicidade do povo, não à globalização, mas aos computadores. Vocês não querem agora que passemos sem eles? interroga-se Pascal Lamy (3). Daniel Cohen, que mantém o que ainda resta desta tese – perfeitamente coerente com a da economia do saber – atribui à produtividade gerada pela tecnologia, e não à globalização, as perdas de emprego e as desigualdades (4): apenas os bem-educados sabem lidar com o computador, ficando com os empregos reservados aos competentes – quanto aos outros, sinto muito…
Curiosamente, os desafios da globalização (já reduzida às trocas) e da “produtividade”, são evocados sob a espécie de uma antinomia (seja uma, seja a outra, e mais a segunda que a primeira), nunca sendo mostradas na sua possível relação de complementaridade, talvez mesmo de causalidade: afinal, o que é que sustém a corrida louca à produtividade senão, por um lado, as formidáveis pressões da concorrência “não falseada” (5) e, por outro, a injunção para a elevação permanente da rentabilidade financeira, expressão mesma do império da finança acionista (6), os dois pilares daquilo que podemos denominar de globalização?
O economista Patrick Artus, que tinha anunciado em 2008, a propósito da “globalização”, que “o pior estava ainda para vir” (7), refletiu melhor depois disso e pensa agora que seria loucura “recusar a globalização” (8), com um argumento pleno de esperança: tem sido, de facto, um pouco duro até aqui, mas é absolutamente preciso dar-lhe continuidade, porque em breve “isto” vai compensar! Esquema neo-liberal mais do que estafado, mas chistosamente reposto à moda do dia, este apelo à paciência comoverá, sem dúvida, todos aqueles que se recordam de quinze anos de desinflação competitiva à base de ajustamentos de longo curso, que supostamente dariam seus frutos, “no final” – do qual ainda estamos à espera. Sim, sem dúvida, a China acabará desenvolvendo instituições salariais maduras adequadas à solvência de um mercado interno e, de grande exportadora, tornar-se-á nossa grande cliente – mas quando exatamente? Em dez anos? Quinze? Qual é a solução para aguentar até lá? Continuamos enredados no paciência-que-isto-em-breve-vai-compensar?
E se, do mesmo modo como a China, a 150 euros, se tornou já vítima de deslocalizações para o Vietnã, a 75 euros, a globalização der um salto para o continente africano – ainda inteiramente disponível para se integrar no sistema! – e quebrar todos os preços? Mais um último bocadinho de paciência, de meio século, para que a África complete o seu percurso?
É claro que o presente desastre perturba os velhos amigos da globalização que, não se resolvendo a declarar-se seus inimigos, sentem contudo uma certa necessidade de contrariar a impressão de que não encontram nada de novo para dizer. Por uma série de correções de trajetória que devem cumprir a façanha de ser insensíveis – não se colocar em contradição flagrantre, menos ainda dar a entender que se possam ter enganado – operando, ainda assim, reais efeitos de reposicionamento, cada um deles se esforça por encontrar algo de novo a dizer. Mas apenas o mínimo, segundo o que os acontecimentos em curso permitam, mantendo-se sempre no centro de gravidade do discurso legítimo – que exige agora, por exemplo, mostrar-se firme, ao menos em palavras, com a finança – e assim continuar a “ser alguém”. Então sim, pressionado pela corrente dos factos, Daniel Cohen confessa ter reservas, que certamente albergou em segredo durante muito tempo, sobre o poder dos acionistas, enquanto Artus se entrega a improváveis distinções entre “mundialização” e “globalização” para salvar o que possa ser salvo... mas também para se permitir um pequeno resto de sentido crítico. Até Lawrence Summers, ex-conselheiro econômico de Barack Obama e papa da desregulamentação da era Clinton (1993-2001), admite que os trabalhadores norte-americanos têm “bons motivos” para acreditar que “o que é bom para a economia global pode não ser bom para eles” (9) 
As rachaduras do sistema e as repetidas bofetadas da realidade acabaram abrindo brechas, pelas quais argumentos por muito tempo proibidos conseguem ressurgir – é verdade que um sistema que força os seus defensores a recorrer à retórica do “globalmente positivo” (10) está geralmente mais perto do caixote de lixo da história do que da sua apoteose. Ligeiramente desnorteado, o economista Elie Cohen constata que “o discurso da globalização feliz é difícil (sic) de sustentar hoje em dia” (11). A palavra “desglobalização”, cuja paternidade se convencionou atribuir ao economista filipino Walden Bello (12), tomou logicamente o significado de um horizonte político desejável para todas as cóleras sociais que a globalização não cessa de produzir. Porque, no fim das contas, as coisas são muito simples: se foi tão fácil chegar a um acordo para chamar de “globalização” à configuração presente do capitalismo, então também deve ser igualmente fácil acordarmos em entender por “desglobalização” a afirmação de um projeto de ruptura com essa ordem.
É verdade, entretanto, que existem várias maneiras de “romper”. A do deputado socialista Arnaud Montebourg (13)mantém-se europeia – desejamos-lhe boa sorte com a Alemanha quando se tratar de pôr em causa a submissão das políticas económicas à disciplina dos mercados e a independência do Banco Central… Um pouco à imagem do «efeito Fabius» de 2005 (que havia tomado partido pelo «não» no referendo sobre o tratado constitucional europeu), o Sr. Montebourg, candidato respeitável às primárias num partido respeitável, provocou sem dúvida um salto quântico na legitimidade do debate sobre a desglobalização. E por essa via tornou audíveis discursos que não podiam antes sê-lo. Como o do economista Jacques Sapir, cujo modo de ver é mais radical, pois que, na panóplia de soluções que encara, não hesita em incluir a opção pela restauração da soberania nacional (pela saída do euro) se todas as outras viessem a falhar (14).
Debate tenso na esquerda
É precisamente nesse ponto que o debate fica tenso na esquerda. Não poderíamos imaginar que membros do conselho científico da Associação pela Tributação das Transações Financeiras e Ação Cidadã (ATTAC) pudessem se alarmar com a circulação do tema da desglobalização. E menos ainda que o fizessem em termos de estigmatização de “retração nacional” (repli national) que ecoa estranhamente com as habituais fulminações do editorialismo liberal, preparando o caminho para a assimilação às “políticas sombrias que vão fazendo o seu caminho sob os disfarces mais diversos” (15).
É de espantar essa contribuição de uma parte da esquerda crítica – talvez involuntária, mas de qualquer modo objetivamente constituída – às piores distorções da desglobalização, nomeadamente aquela que persiste na fantasmagoria obsessiva do “sindroma da fortaleza”, à base de muralhas, pontes levadiças e economia autárquica. Julgar-se-ia reservada ao cronista do ‘Figaro’ Alexandre Adler a antinomia que não concebe senão a Coreia do Norte e a forma do “reino eremita” como opostos dialéticos da globalização. Mas eis que as alusões dos signatários do ATTAC vêm por sua vez alimentar esta figura imaginária, que um olhar lançado sobre a história económica recente deveria bastar para invalidar.
É que, se, reportando-nos às nossas normas presentes (aliás singular e sintomaticamente deslocadas), a configuração fordista do capitalismo do pós-guerra tinha tudo da desglobalização, não encontraremos ali nem arames farpados, nem postos de vigilância, nem economias hermeticamente fechadas, nem projetos de autossuficiência. Terrível enfermidade esta do pensamento do terceiro excluído, que não concebe senão um mundo globalizado ou o inferno das nações, mas nada entre os dois. É preciso relembrar incessantemente a possibilidade do internacional, que talvez devesse escrever-se inter-nacional, para melhor ainda o fazer dizer aquilo que significa, a saber, que pode haver nações e laços entre as nações.
Não consta que o período 1945-1985 tenha ignorado o comércio exterior - sem dúvida o comércio internacional era então menos desenvolvido do que é hoje... mas não é seguro que isso fosse uma falha. Também não consta que essa restrição – um regime de comércio que pelas presentes normas seria indiscutivelmente qualifficado de protecionista - tenha trazido a guerra que nos promete agora Pascal Lamy a cada vez que se sugere não sacrificar absolutamente tudo ao livre-comércio. Enfim, catastrófica convergência retórica, eis que certos alterglobalistas decidem declarar que os direitos aduaneiros “alimenta[ria]m a xenofobia e o nacionalismo” (16), ou seja, concordam com Lamy sem tirar nem por.
Gostaríamos também de lembrar que o “horror nacional-protecionista” do fordismo foi uma época, sem dúvida imperfeita, de pleno emprego, de crescimento – é verdade que destituído de consciência ecológica – e de paz entre os países avançados. Uma paz apenas relativa, sem dúvida, mas ainda assim...
Também não consta que o princípio nacional tenha sido abolido, mesmo no mundo supostamente globalizado, pois – atenção, liberais e alterglobalistas! – ainda existem nações! Há a China e os Estados Unidos, que estranhamente nunca vêm questionados, nem seu nacionalismo, nem as suas afirmações de soberania. Estes dois dariam muita risada se fossem convidados a se fundir em blocos mais vastos. Coisa ainda mais surpreendente, estas duas nações incorrigíveis não fazem necessariamente a guerra entre si, nem a fazem a nós tão pouco!
Também não consta que as relações entre as nações devam ser concebidas exclusivamente sob a perspectiva da mercadoria. Ficamos pasmados com a força do detergente liberal, capaz de promover uma tal lavagem nos cérebros que os faz esquecer que colocar algum limite à circulação de contentores e de capitais não impede, de modo algum, a maior circulação possível de obras, de estudantes, de artistas, de pesquisadores, de turistas. É como se a circulação mercantil fosse a única medida do grau de abertura das nações! – e só a má fé pode atribuir à desglobalização querer liquidar as “boas” circulações juntamente com as “más”.
Dir-nos-ão que a ATTAC muito rapidamente se desfez do seu primeiro rótulo de “antiglobalização”, precisamente para se redefinir como “alterglobalista”. Talvez esteja aí o divisor de águas teórico, como indica a recorrente obsessão dos signatários em que se veja “um conflito de classes transformado em conflito de nações” (17). Embora partindo de uma questão profunda, esse enunciado está fadado à inanidade, se acha que pode negar o facto nacional – ou melhor, os factos nacionais – e os antagonismos que daí decorrem quase inevitavelmente. Ora, sempre pelo mesmo trágico efeito de terceiro excluído, este antagonismo é logo compreendido como “guerra” e como negação absoluta da possibilidade de relações de cooperação, as quais no entanto poderiam perfeitamente ser estabelecidas, por outras vias.
Votos piedosos e relações concretas
A não ser que se queira perseguir a quimera de uma humanidade completamente reconciliada, teremos de nos habituar à ideia de que a comunidade humana em sentido amplo é necessariamente atravessada por antagonismos, e que alguns deles se estabelecem de acordo com o traçado das nações.
É por demais evidente que nem todos os antagonismos respondem pela gramática nacional, mas também por outras gramáticas, por vezes transversais – o antagonismo de classe, por exemplo. Mas não poderemos reter de entre estas múltiplas gramáticas apenas aquela que seja da nossa preferência! Quanto a saber-se se uma qualquer delas goza de algum primado, essa é uma questão que não admite uma resposta geral, mas que se encontra sempre determinada pela configuração particular das estruturas do capitalismo. Pode-se observar muito justamente que os trabalhadores chineses e os trabalhadores franceses estão na mesma relação de antagonismo de classe diante do “seu” capital, mas nem por isso as estruturas da globalização econômica deixam de colocá-los também e objetivamente em uma relação de antagonismo mútuo. De nada valerá contra isso uma atitude de pura negação.
Apelar à solidariedade de classe franco-chinesa procede de um universalismo abstrato que ignora dados estruturais concretos e todo o seu poder de configurar conflitos objetivos – ironicamente, aquilo mesmo que Karl Marx reprovava aos “jovens hegelianos de esquerda”. Em vez de tomar como ponto de partida certas “essências” (a “essência” do salariato ou a “essência” da luta de classes) que produziriam, por si mesmas, efeitos improváveis, seria melhor pensar em refazer as estruturas reais que determinam as múltiplas relações que os diversos grupos sociais mantém entre si.
Deste modo, em alguns países, as estruturas da finança acionária e das aposentadorias capitalizadas colocam objetivamente em conflito diversas frações da própria classe trabalhadora: pensionistas (interessados na rentabilidade financeira) contra assalariados (dos quais é extraída a contribuição), assalariados despedidos de um centro de produção contra funcionários-acionistas do mesmo grupo (cujos títulos se vão valorizar), etc.. É absolutamente inútil pedir a toda esta gente solidariedades de classe abstratas contra as estruturas que as destroem concretamente e configuram objetivamente seus interesses sob relações antagônicas. Mas seria útil, isso sim, refazer as estruturas (destruir a finança acionária, promover incessantemente a distribuição) de modo a criar condições concretas propícias à reconstituição das unidades quebradas e, por esse meio, poder fazer prevalecer uma certa gramática de antagonismo sobre as outras.
As atuais estruturas de livre-comércio e circulação dos investimentos diretos interditam a passagem a ato das solidariedades possíveis entre trabalhadores franceses e chineses. Esse é o paradoxo não percebido pelos “globalizadores”, liberais e alterglobalistas. Ao contrário do que muito se diz, um protecionismo razoável e negociado não prejudica os interesses dos trabalhadores dos países emergentes, podendo mesmo permitir que, sem o incentivo de focar tudo na exportação, se apresse a passagem a regimes de crescimento mais autocentrados, atraindo funcionalmente a expansão e a estabilização dos rendimentos salariais. Quanto aos interesses dos assalariados dos países desenvolvidos, seja dito de passagem que eles são sistematicamente tidos por negligenciáveis nesta discussão.
É somente quando os assalariados nacionais são retirados das relações antagónicas a que são votados pelo livre-comércio desigual que se podem desenvolver solidariedades transversais (transnacionais), prevalecendo então a gramática classista sobre a nacionalista – em suma, respeitar o “facto nacional” poderá ser o melhor meio de dar a sua oportunidade (internacional) ao “facto de classe” salarial. Assim como a “concorrência não falseada” não passa de um protecionismo disfarçado (e da pior espécie) (18), pode ser que, ao contrário do que crêem alguns altermundialistas, formas de protecionismo transparentes e racionalmente negociadas tenham boas propriedades cooperativas, gerenciando possibilidades de desenvolvimento autônomo, embora (razoavelmente) interativos, e criando as condições concretas das solidariedades transnacionais de classe.
Mas a questão da desglobalização não se esgota em absoluto na do protecionismo (em que os globalizadores a quereriam acantonar), e menos ainda nestes poucos argumentos necessariamente parcelares. Ela apela antes a que entremos nela não por considerações económicas, mas pelo problema fundamental sob o qual ela toma verdadeiramente sentido, o problema propriamente político da soberania e de suas limitações possíveis (19) – que absolutamente não se limitam ao âmbito das atuais nações.
Dado fundamental da vida dos povos, a soberania é ignorada, nos seus requisitos mais essenciais, por todos os defensores da globalização, como revela o emaranhado conceito de “governança”. “O problema central é o da governança mundial”, repete sintomaticamente Daniel Cohen (20). Não! O problema central é o da constituição de entidades políticas autenticamente soberanas, as únicas que podem ser dotadas da força capaz de se opor à força do capital. E cuja denegação está contida na quimera das “instituições internacionais fortes” (21) esse perfeito oximoro que faz dizer a Daniel Cohen que “sem instituições internacionais fortes permaneceremos no caos”. Mais vale dizer, simplesmente, que permaneceremos no caos. Se houvesse então um único princípio geral para governar o debate sobre a globalização, poderia ser este: não podemos deixar os povos por muito tempo sem soluções de soberania.
Uma definição afinal muito simples
Poderíamos reconduzir a controvérsia da desglobalização a uma questão de identificação convencional muito simples, à luz da conjuntura presente. A globalização promove a concorrência “não falseada” entre economias de padrões salariais abissalmente diferentes; a permanente ameaça de deslocalização; a constrição acionária impondo rentabilidades financeiras ilimitadas, de modo que sua combinação opera uma compressão constante dos rendimentos salariais; o consequente desenvolvimento do endividamento crônico das famílias; a licença ilimitada dada às finanças para desenvolver operações especulativas desestabilizadoras ou, em falta disso, operações a partir da dívida das famílias (como no caso dos subprimes); a colocação dos poderes públicos na condição de reféns, devendo socorrer instituições financeiras surpreendidas pelas crises recorrentes; a imposição dos custos macroeconômicos dessas crises aos desempregados, e do custo destes para as finanças públicas aos contribuintes, aos utentes, aos funcionários e aos pensionistas; a espoliação dos cidadãos de qualquer influência sobre a política econômica, agora definida apenas segundo os desejos dos credores internacionais, não importando quanto isso custe ao tecido social; e a entrega da política monetária a uma instituição independente fora do alcance de qualquer controle político. É tudo isto, enfim, que poderíamos, por uma convenção de linguagem pouco exigente, nomear como globalização.
Concluimos pois, de uma forma igualmente simplificada, que se declarar favorável à desglobalização é simplesmente, de uma maneira geral, declarar não querer mais nada disto!

(*) Frédéric Lordon (n. 1962) é um economista francês, diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e investigador no Centre de Sociologie Européenne (CSE). Faz parte do coletivo dos “economistas aterrados”. É autor, entre muitas outras obras, de L'intérêt souverain: Essai d'anthropologie économique spinoziste, Paris, La Découverte, 2006; Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière, Raisons d’Agir, Paris, 2008; La crise de trop - Reconstruction d'un monde failli, Paris, Éditions Fayard, 2009. Este artigo foi publicado originalmente na revista ‘Le Monde Diplomatique’, agosto de 2011. Numa outra tradução foi também publicado na edição portuguesa de ‘Le Monde Diplomatique’, nº 58, agosto de 2011.
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NOTAS:
(1) Le Monde: editorial de 1 de julho de 2011; Zaki Laïdi, ‘Absurde démondialisation, 29 de junho de 2011; Pascal Lamy, ‘La démondialisation est un concept réaccionaire, 1 de julho de 2011.
(2) Daniel Cohen, La Mondialisation et ses ennemis, Grasset, Paris, 2004.
(3) Pascal Lamy, op. cit.
(4) 'La mondialisation est-elle coupable?', entrevista com Daniel Cohen e Jacques Sapir, Alternatives économiques, n° 303, Paris, junho de 2011.
(5) Com os salários chineses a 100 euros mensais, não se pode dizer que a concorrência seja desleal... Veremos o que veremos quando a África, a 15 euros, entrar também na dansa!
(6) Isabelle Pivert, ‘La religion des quinze pour cent’, Le Monde diplomatique, março de 2009.
(7) Patrick Artus e Marie-Paule Virard, Globalisation, le pire est à venir, La Découverte, Paris, 2008.
(8) Patrick Artus, ‘Ce n’est pas le moment de refuser la mondialisation, Flash économie, Natixis, n° 472, 21 juin 2011.
(9) Lawrence Summers, ‘A strategy to promote healthy globalisation’, Financial Times, Londres, 5 de maio de 2008.
(10) Daniel Cohen, ‘Sortir de la crise’, Le Nouvel Observateur, Paris, 7 de setembro de 2009.
(11) Elie Cohen: ‘L’idéologie de Davos a buté sur la crise’, Nouvelobs.com, 26 de janeiro de 2010.
(12) Walden Bello, Deglobalization: Ideas for a New World Economy, Zed Books, Londres-Nova Iorque, 2002. A palavra foi primeiro empregue por Bernard Cassen em 1996: ‘Et maintenant... démondialiser pour internationaliser’, Manière de voir, n° 32, novembro de 1996.
(13) Arnaud Montebourg, Votez pour la démondialisation !, Flammarion, Paris, 2011.
(14) Jacques Sapir, La Démondialisation, Seuil, Paris, 2011. Cf. também, do mesmo autor, ‘S’il faut sortir de l’euro... ‘ , documento de trabalho CEMI-EHESS, Paris, abril de 2011.
(15) ‘La démondialisation, un concept superficiel et simpliste’, por nove membros do conselho científico do ATTAC, 6 de junho de 2011.
(16) Pierre Khalfa, 'Les impasses de la démondialisation. Réponse à quelques contradicteurs’ , Mediapart, 20 de junho de 2011.
(17) Ibid. ; Jean-Marie Harribey, ‘La démondialisation heureuse?’, blog d’Alternatives économiques, Paris, 16 de junho de 2011.
(18) ‘La “menace protectionniste”, ce concept vide de sens’, incluído em La Crise de trop, Fayard, Paris, 2009.
(19) ‘Qui a peur de la démondialisation ?’, La pompe à phynance, Les blogs du Diplo, 13 de junho de 2011.
(21) Ibid.

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