O
Comuneiro
nº
14, março de 2012
Equilibradas sobre o fio da dívida pública, as economias
ocidentais cambaleiam de crise em crise. Reuniões e cimeiras “extraordinárias”,
em que se decide o destino de um país ou de um continente, são agora rotina
para os responsáveis políticos, que, desde há três anos, assumem um papel de
pronto-socorro da grande finança. Mas um outro caminho tem sido aberto, que
suscita já temores e controvérsias: quem tem medo da desglobalização?
No início, as coisas eram simples: havia a razão - que se
distribuía por círculos (com Alain Minc no centro) - e havia a pura insanidade.
Os racionais estabeleceram que a globalização era a realização da felicidade, e
todos aqueles que não tivessem o bom gosto de acreditar nisso deveriam ser
internados. A “razão” confrontava-se, porém, com um ligeiro problema de
coerência interna, pois que, votada ao ideal da discussão conduzida segunda as
normas da verdade e do melhor argumento, nem por isso deixou de interditar todo
o debate durante duas décadas, consentindo em que ele se abrisse apenas quando
sobreveio o espetáculo da maior crise do capitalismo.
O jornal ‘Le Monde’ não hesita em dar as “boas vindas ao
grande debate sobre a desglobalização”. E introdu-lo (sem dúvida a título de
“boas vindas”) com um artigo explicando que a desglobalização “é absurda”. Para
equilibrar os pontos de vista, segue-se uma entrevista em que se certifica que
ela é “reaccionária” (1) – com efeito, não se trata da mesma
coisa e as duas opiniões mereciam aqui ser mencionados.
A temporalidade da macroeconomia fará com que os terríveis
efeitos da mega-austeridade europeia se façam sentir realmente na França a
partir do primeiro semestre de 2012. No cruzamento entre o delírio da finança,
as políticas econômicas tutelada pelos mercados e as deslocalizações que
prosseguem durante a própria crise, a globalização promete mostrar-se em seus
mais ofuscantes trajes. Obrigará ela, enfim, o debate presidencial a colocar as
verdadeiras questões? Ora, estas questões - desemprego, precariedade, desigualdades,
perdas da soberania popular – reconduzem-se, por fim, sinteticamente, a uma só:
a globalização. A rutura com as alternâncias sem alternativa toma então o
simples nome de “desglobalização”.
O nome é simples mas o debate complicado. A disputa inteletual redesenha
a paisagem política, com suas fraturas inesperadas e suas repercussões
duvidosas, mas sempre contra o sindicato dos interesses dominantes: aqueles que
não querem aparecer quando se põe a questão “a quem aproveita a globalização?”;
aqueles que, depois de terem lutado para que o debate não tivesse lugar, lutam
agora por que ele resulte numa aclamação.
É a um trabalho de historiador que faria apelo o recenseamento
completo da panóplia dos argumentos globalizadores, dos mais estúpidos (a
“globalização feliz”, que a esse título tem já assegurado o seu lugar na
história) aos mais elaborados. Nenhum deles foi abandonado, entretanto, pois
que todas as munições são boas para salvar o que possa ser ainda salvo. Por
exemplo, repetindo o gesto do Paul Krugman de 1998 (ainda não «Prémio Nobel» da
Economia), pedindo que “não culpem a globalização” – que ele aliás imita
estigmatizando os “inimigos da globalização” (2) -, o economista Daniel Cohen toma
ainda grandes cuidados em excluir do perímetro da globalização a
financeirização. É verdade que esta última nunca foi muito cómoda de defender,
e menos ainda se tornou a partir de 2007, pelo que é melhor deixá-la
prudentemente à margem do debate.
Reconhecer-se-á aí um procedimento típico, há muito tempo em uso
naquilo que poderíamos chamar de esqueda choramingona, muito empenhada em
continuar a mostrar-se solidária com o salariato sofredor (ela é “de esquerda”
ainda assim), deplorando com lágrimas ardentes que haja tantas desigualdades,
precaridade e outras infelicidades, mas sobretudo decidida a não as relacionar
com as respetivas causas estruturais: a liberalização financeira e o poder dos
acionistas, a construção da Europa com base na escolha deliberada de expor a
política econômica à disciplina do mercado financeiro, a concorrência livre e
não falseada. Ou seja, todas aquelas coisas intocáveis que constituiram
implicitamente (perdoem-nos esta audácia geométrica) o enquadramento do círculo
da razão, do círculo dos que “querem ser alguém”. As coisas que devem ser ditas
(contra o inferno das que não se podem dizer) para poder continuar apertando a
mão do ministro, ser convidado para falar na televisão, ser consultado pelos
partidos (de esquerda e de direita) – em uma palavra, ser amado pelas
instituições.
Um pesadelo espetacular
Mas eis que a crise vem e arrasa tudo – trazendo consigo a
terrível ameaça pelo ridículo. O inferno agora não são os outros, são os
arquivos! E assim todos se afadigam por fazer esquecer as posições por si
tomadas no passado (mas sempre sem sacrificar o “essencial”). Soou o dobre de
finados para a Fondation Saint-Simon, a République des Idées, Terra Nova e
outros belos exemplares de aparelhos ideológicos da globalização, que não terão
similares seus para organizar a esquiva e a infleção de rumo. Resta, contudo,
que os meios discursivos do passado têm que ser revistos. “Não falar no
assunto” ainda era possível, até a globalização se transformar num pesadelo
espetacular de grande público. Poderia aliviar-se a situação dos infelizes por
meio de processos exclusivamente internos, cuidando de permanecer sempre dentro
do “quadro”, sem questionar nada. As palavras de ordem seriam reforma
tributária (certamente útil) e, acima de tudo, e-du-ca-ção!
Seriam educados os “perdedores” – para torná-los “competitivos
por cima”. Ah! A educação, a economia do conhecimento, a knowledge-based
economy, que é a alegria da Comissão Europeia: desculpa perfeita
para responsabilizar os “idiotas” por se fazerem “empregáveis”, sem ter de
mencionar as causas estruturais que destroem o emprego. Sem contar que esses
agradáveis horizontes, necessariamente de longo prazo (pois que se trata de uma
dura tarefa de formar imbecis), autorizavam a que nada se fizesse no
entretanto. Mas eis que se torna difícil não falar mais das “coisas
estruturais” conhecidas sob o nome de globalização, pois que os seus estragos,
toleráveis enquanto se mantivessem silenciosos, tiveram subitamente o mau gosto
de emergir com estrondo.
Claro que há um esforço a fazer para manter alguns dos velhos
argumentos, como a tese da “tecnologia”, que imputa a infelicidade do povo, não
à globalização, mas aos computadores. Vocês não querem agora que passemos sem
eles? interroga-se Pascal Lamy (3).
Daniel Cohen, que mantém o que ainda resta desta tese – perfeitamente coerente
com a da economia do saber – atribui à produtividade gerada pela tecnologia, e
não à globalização, as perdas de emprego e as desigualdades (4):
apenas os bem-educados sabem lidar com o computador, ficando com os empregos
reservados aos competentes – quanto aos outros, sinto muito…
Curiosamente, os desafios da globalização (já reduzida às
trocas) e da “produtividade”, são evocados sob a espécie de uma antinomia (seja
uma, seja a outra, e mais a segunda que a primeira), nunca sendo mostradas na
sua possível relação de complementaridade, talvez mesmo de causalidade: afinal,
o que é que sustém a corrida louca à produtividade senão, por um lado, as
formidáveis pressões da concorrência “não falseada” (5) e, por outro, a injunção para a
elevação permanente da rentabilidade financeira, expressão mesma do império da
finança acionista (6),
os dois pilares daquilo que podemos denominar de globalização?
O economista Patrick Artus, que tinha anunciado em 2008, a
propósito da “globalização”, que “o pior estava ainda para vir” (7),
refletiu melhor depois disso e pensa agora que seria loucura “recusar a
globalização” (8),
com um argumento pleno de esperança: tem sido, de facto, um pouco duro até
aqui, mas é absolutamente preciso dar-lhe continuidade, porque em breve “isto”
vai compensar! Esquema neo-liberal mais do que estafado, mas chistosamente
reposto à moda do dia, este apelo à paciência comoverá, sem dúvida, todos
aqueles que se recordam de quinze anos de desinflação competitiva à base de
ajustamentos de longo curso, que supostamente dariam seus frutos, “no final” –
do qual ainda estamos à espera. Sim, sem dúvida, a China acabará desenvolvendo
instituições salariais maduras adequadas à solvência de um mercado interno e,
de grande exportadora, tornar-se-á nossa grande cliente – mas quando
exatamente? Em dez anos? Quinze? Qual é a solução para aguentar até lá?
Continuamos enredados no paciência-que-isto-em-breve-vai-compensar?
E se, do mesmo modo como a China, a 150 euros, se tornou já
vítima de deslocalizações para o Vietnã, a 75 euros, a globalização der um
salto para o continente africano – ainda inteiramente disponível para se
integrar no sistema! – e quebrar todos os preços? Mais um último bocadinho de
paciência, de meio século, para que a África complete o seu percurso?
É claro que o presente desastre perturba os velhos amigos da
globalização que, não se resolvendo a declarar-se seus inimigos, sentem contudo
uma certa necessidade de contrariar a impressão de que não encontram nada de
novo para dizer. Por uma série de correções de trajetória que devem cumprir a
façanha de ser insensíveis – não se colocar em contradição flagrantre, menos
ainda dar a entender que se possam ter enganado – operando, ainda assim, reais
efeitos de reposicionamento, cada um deles se esforça por encontrar algo de
novo a dizer. Mas apenas o mínimo, segundo o que os acontecimentos em curso
permitam, mantendo-se sempre no centro de gravidade do discurso legítimo – que
exige agora, por exemplo, mostrar-se firme, ao menos em palavras, com a finança
– e assim continuar a “ser alguém”. Então sim, pressionado pela corrente dos
factos, Daniel Cohen confessa ter reservas, que certamente albergou em segredo
durante muito tempo, sobre o poder dos acionistas, enquanto Artus se entrega a
improváveis distinções entre “mundialização” e “globalização” para salvar o que
possa ser salvo... mas também para se permitir um pequeno resto de sentido
crítico. Até Lawrence Summers, ex-conselheiro econômico de Barack Obama e papa
da desregulamentação da era Clinton (1993-2001), admite que os trabalhadores
norte-americanos têm “bons motivos” para acreditar que “o que é bom para a
economia global pode não ser bom para eles” (9) …
As rachaduras do sistema e as repetidas bofetadas da realidade
acabaram abrindo brechas, pelas quais argumentos por muito tempo proibidos
conseguem ressurgir – é verdade que um sistema que força os seus defensores a
recorrer à retórica do “globalmente positivo” (10) está geralmente mais perto do caixote
de lixo da história do que da sua apoteose. Ligeiramente desnorteado, o
economista Elie Cohen constata que “o discurso da globalização feliz é difícil
(sic) de sustentar hoje em dia” (11).
A palavra “desglobalização”, cuja paternidade se convencionou atribuir ao
economista filipino Walden Bello (12),
tomou logicamente o significado de um horizonte político desejável para todas
as cóleras sociais que a globalização não cessa de produzir. Porque, no fim das
contas, as coisas são muito simples: se foi tão fácil chegar a um acordo para
chamar de “globalização” à configuração presente do capitalismo, então também
deve ser igualmente fácil acordarmos em entender por “desglobalização” a
afirmação de um projeto de ruptura com essa ordem.
É verdade, entretanto, que existem várias maneiras de “romper”.
A do deputado socialista Arnaud Montebourg (13)mantém-se
europeia – desejamos-lhe boa sorte com a Alemanha quando se tratar de pôr em
causa a submissão das políticas económicas à disciplina dos mercados e a
independência do Banco Central… Um pouco à imagem do «efeito Fabius» de 2005
(que havia tomado partido pelo «não» no referendo sobre o tratado constitucional
europeu), o Sr. Montebourg, candidato respeitável às primárias num partido
respeitável, provocou sem dúvida um salto quântico na legitimidade do debate
sobre a desglobalização. E por essa via tornou audíveis discursos que não
podiam antes sê-lo. Como o do economista Jacques Sapir, cujo modo de ver é mais
radical, pois que, na panóplia de soluções que encara, não hesita em incluir a
opção pela restauração da soberania nacional (pela saída do euro) se todas as
outras viessem a falhar (14).
Debate tenso na esquerda
É precisamente nesse ponto que o debate fica tenso na esquerda.
Não poderíamos imaginar que membros do conselho científico da Associação pela
Tributação das Transações Financeiras e Ação Cidadã (ATTAC) pudessem se alarmar
com a circulação do tema da desglobalização. E menos ainda que o fizessem em
termos de estigmatização de “retração nacional” (repli national) que ecoa estranhamente com as
habituais fulminações do editorialismo liberal, preparando o caminho para a
assimilação às “políticas sombrias que vão fazendo o seu caminho sob os
disfarces mais diversos” (15).
É de espantar essa contribuição de uma parte da esquerda crítica
– talvez involuntária, mas de qualquer modo objetivamente constituída – às
piores distorções da desglobalização, nomeadamente aquela que persiste na
fantasmagoria obsessiva do “sindroma da fortaleza”, à base de muralhas, pontes
levadiças e economia autárquica. Julgar-se-ia reservada ao cronista do ‘Figaro’
Alexandre Adler a antinomia que não concebe senão a Coreia do Norte e a forma
do “reino eremita” como opostos dialéticos da globalização. Mas eis que as
alusões dos signatários do ATTAC vêm por sua vez alimentar esta figura
imaginária, que um olhar lançado sobre a história económica recente deveria
bastar para invalidar.
É que, se, reportando-nos às nossas normas presentes (aliás
singular e sintomaticamente deslocadas), a configuração fordista do capitalismo
do pós-guerra tinha tudo da desglobalização, não encontraremos ali nem arames
farpados, nem postos de vigilância, nem economias hermeticamente fechadas, nem
projetos de autossuficiência. Terrível enfermidade esta do pensamento do
terceiro excluído, que não concebe senão um mundo globalizado ou o inferno das
nações, mas nada entre os dois. É preciso relembrar incessantemente a
possibilidade do internacional, que talvez devesse escrever-se inter-nacional,
para melhor ainda o fazer dizer aquilo que significa, a saber, que pode haver
nações e laços entre as nações.
Não consta que o período 1945-1985 tenha ignorado o comércio
exterior - sem dúvida o comércio internacional era então menos desenvolvido do
que é hoje... mas não é seguro que isso fosse uma falha. Também não consta que
essa restrição – um regime de comércio que pelas presentes normas seria
indiscutivelmente qualifficado de protecionista - tenha trazido a guerra que
nos promete agora Pascal Lamy a cada vez que se sugere não sacrificar
absolutamente tudo ao livre-comércio. Enfim, catastrófica convergência
retórica, eis que certos alterglobalistas decidem declarar que os direitos
aduaneiros “alimenta[ria]m a xenofobia e o nacionalismo” (16),
ou seja, concordam com Lamy sem tirar nem por.
Gostaríamos também de lembrar que o “horror
nacional-protecionista” do fordismo foi uma época, sem dúvida imperfeita, de pleno
emprego, de crescimento – é verdade que destituído de consciência ecológica – e
de paz entre os países avançados. Uma paz apenas relativa, sem dúvida, mas
ainda assim...
Também não consta que o princípio nacional tenha sido abolido,
mesmo no mundo supostamente globalizado, pois – atenção, liberais e
alterglobalistas! – ainda existem nações! Há a China e os Estados Unidos, que
estranhamente nunca vêm questionados, nem seu nacionalismo, nem as suas
afirmações de soberania. Estes dois dariam muita risada se fossem convidados a
se fundir em blocos mais vastos. Coisa ainda mais surpreendente, estas duas
nações incorrigíveis não fazem necessariamente a guerra entre si, nem a fazem a
nós tão pouco!
Também não consta que as relações entre as nações devam ser concebidas
exclusivamente sob a perspectiva da mercadoria. Ficamos pasmados com a força do
detergente liberal, capaz de promover uma tal lavagem nos cérebros que os faz
esquecer que colocar algum limite à circulação de contentores e de capitais não
impede, de modo algum, a maior circulação possível de obras, de estudantes, de
artistas, de pesquisadores, de turistas. É como se a circulação mercantil fosse
a única medida do grau de abertura das nações! – e só a má fé pode atribuir à
desglobalização querer liquidar as “boas” circulações juntamente com as “más”.
Dir-nos-ão que a ATTAC muito rapidamente se desfez do seu
primeiro rótulo de “antiglobalização”, precisamente para se redefinir como
“alterglobalista”. Talvez esteja aí o divisor de águas teórico, como indica a
recorrente obsessão dos signatários em que se veja “um conflito de classes
transformado em conflito de nações” (17).
Embora partindo de uma questão profunda, esse enunciado está fadado à
inanidade, se acha que pode negar o facto nacional – ou melhor, os factos
nacionais – e os antagonismos que daí decorrem quase inevitavelmente. Ora,
sempre pelo mesmo trágico efeito de terceiro excluído, este antagonismo é logo
compreendido como “guerra” e como negação absoluta da possibilidade de relações
de cooperação, as quais no entanto poderiam perfeitamente ser estabelecidas,
por outras vias.
Votos piedosos e relações concretas
A não ser que se queira perseguir a quimera de uma humanidade
completamente reconciliada, teremos de nos habituar à ideia de que a comunidade
humana em sentido amplo é necessariamente atravessada por antagonismos, e que
alguns deles se estabelecem de acordo com o traçado das nações.
É por demais evidente que nem todos os antagonismos respondem
pela gramática nacional, mas também por outras gramáticas, por vezes
transversais – o antagonismo de classe, por exemplo. Mas não poderemos reter de
entre estas múltiplas gramáticas apenas aquela que seja da nossa preferência!
Quanto a saber-se se uma qualquer delas goza de algum primado, essa é uma
questão que não admite uma resposta geral, mas que se encontra sempre
determinada pela configuração particular das estruturas do capitalismo. Pode-se
observar muito justamente que os trabalhadores chineses e os trabalhadores
franceses estão na mesma relação de antagonismo de classe diante do “seu”
capital, mas nem por isso as estruturas da globalização econômica deixam de
colocá-los também e objetivamente em uma relação de antagonismo mútuo. De nada
valerá contra isso uma atitude de pura negação.
Apelar à solidariedade de classe franco-chinesa procede de um
universalismo abstrato que ignora dados estruturais concretos e todo o seu
poder de configurar conflitos objetivos – ironicamente, aquilo mesmo que Karl
Marx reprovava aos “jovens hegelianos de esquerda”. Em vez de tomar como ponto
de partida certas “essências” (a “essência” do salariato ou a “essência” da
luta de classes) que produziriam, por si mesmas, efeitos improváveis, seria
melhor pensar em refazer as estruturas reais que determinam as múltiplas
relações que os diversos grupos sociais mantém entre si.
Deste modo, em alguns países, as estruturas da finança acionária
e das aposentadorias capitalizadas colocam objetivamente em conflito diversas
frações da própria classe trabalhadora: pensionistas (interessados na
rentabilidade financeira) contra assalariados (dos quais é extraída a
contribuição), assalariados despedidos de um centro de produção contra
funcionários-acionistas do mesmo grupo (cujos títulos se vão valorizar), etc..
É absolutamente inútil pedir a toda esta gente solidariedades de classe
abstratas contra as estruturas que as destroem concretamente e configuram
objetivamente seus interesses sob relações antagônicas. Mas seria útil, isso
sim, refazer as estruturas (destruir a finança acionária, promover
incessantemente a distribuição) de modo a criar condições concretas propícias à
reconstituição das unidades quebradas e, por esse meio, poder fazer prevalecer
uma certa gramática de antagonismo sobre as outras.
As atuais estruturas de livre-comércio e circulação dos
investimentos diretos interditam a passagem a ato das solidariedades possíveis
entre trabalhadores franceses e chineses. Esse é o paradoxo não percebido pelos
“globalizadores”, liberais e alterglobalistas. Ao contrário do que muito se
diz, um protecionismo razoável e negociado não prejudica os interesses dos
trabalhadores dos países emergentes, podendo mesmo permitir que, sem o
incentivo de focar tudo na exportação, se apresse a passagem a regimes de
crescimento mais autocentrados, atraindo funcionalmente a expansão e a
estabilização dos rendimentos salariais. Quanto aos interesses dos assalariados
dos países desenvolvidos, seja dito de passagem que eles são sistematicamente
tidos por negligenciáveis nesta discussão.
É somente quando os assalariados nacionais são retirados das
relações antagónicas a que são votados pelo livre-comércio desigual que se
podem desenvolver solidariedades transversais (transnacionais), prevalecendo
então a gramática classista sobre a nacionalista – em suma, respeitar o “facto
nacional” poderá ser o melhor meio de dar a sua oportunidade (internacional) ao
“facto de classe” salarial. Assim como a “concorrência não falseada” não passa
de um protecionismo disfarçado (e da pior espécie) (18),
pode ser que, ao contrário do que crêem alguns altermundialistas, formas de
protecionismo transparentes e racionalmente negociadas tenham boas propriedades
cooperativas, gerenciando possibilidades de desenvolvimento autônomo, embora
(razoavelmente) interativos, e criando as condições concretas das
solidariedades transnacionais de classe.
Mas a questão da desglobalização não se esgota em absoluto na do
protecionismo (em que os globalizadores a quereriam acantonar), e menos ainda
nestes poucos argumentos necessariamente parcelares. Ela apela antes a que
entremos nela não por considerações económicas, mas pelo problema fundamental
sob o qual ela toma verdadeiramente sentido, o problema propriamente político
da soberania e de suas limitações possíveis (19) – que absolutamente não se limitam ao
âmbito das atuais nações.
Dado fundamental da vida dos povos, a soberania é ignorada, nos
seus requisitos mais essenciais, por todos os defensores da globalização, como
revela o emaranhado conceito de “governança”. “O problema central é o da governança
mundial”, repete sintomaticamente Daniel Cohen (20).
Não! O problema central é o da constituição de entidades políticas
autenticamente soberanas, as únicas que podem ser dotadas da força capaz de se
opor à força do capital. E cuja denegação está contida na quimera das
“instituições internacionais fortes” (21) esse perfeito oximoro que faz dizer a
Daniel Cohen que “sem instituições internacionais fortes permaneceremos no
caos”. Mais vale dizer, simplesmente, que permaneceremos no caos. Se houvesse
então um único princípio geral para governar o debate sobre a globalização,
poderia ser este: não podemos deixar os povos por muito tempo sem soluções de
soberania.
Uma definição afinal muito simples
Poderíamos reconduzir a controvérsia da desglobalização a uma
questão de identificação convencional muito simples, à luz da conjuntura
presente. A globalização promove a concorrência “não falseada” entre economias
de padrões salariais abissalmente diferentes; a permanente ameaça de
deslocalização; a constrição acionária impondo rentabilidades financeiras
ilimitadas, de modo que sua combinação opera uma compressão constante dos
rendimentos salariais; o consequente desenvolvimento do endividamento crônico
das famílias; a licença ilimitada dada às finanças para desenvolver operações
especulativas desestabilizadoras ou, em falta disso, operações a partir da
dívida das famílias (como no caso dos subprimes); a colocação
dos poderes públicos na condição de reféns, devendo socorrer instituições
financeiras surpreendidas pelas crises recorrentes; a imposição dos custos
macroeconômicos dessas crises aos desempregados, e do custo destes para as
finanças públicas aos contribuintes, aos utentes, aos funcionários e aos
pensionistas; a espoliação dos cidadãos de qualquer influência sobre a política
econômica, agora definida apenas segundo os desejos dos credores internacionais,
não importando quanto isso custe ao tecido social; e a entrega da política
monetária a uma instituição independente fora do alcance de qualquer controle
político. É tudo isto, enfim, que poderíamos, por uma convenção de linguagem
pouco exigente, nomear como globalização.
Concluimos pois, de uma forma igualmente simplificada, que se
declarar favorável à desglobalização é simplesmente, de uma maneira geral,
declarar não querer mais nada disto!
(*) Frédéric Lordon (n. 1962) é um economista francês, diretor
de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e
investigador no Centre de Sociologie Européenne (CSE). Faz parte do coletivo
dos “economistas aterrados”. É autor, entre muitas outras obras, de L'intérêt souverain: Essai d'anthropologie
économique spinoziste, Paris, La Découverte, 2006; Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière, Raisons d’Agir, Paris, 2008; La crise de trop - Reconstruction d'un
monde failli, Paris, Éditions Fayard, 2009. Este artigo foi
publicado originalmente na revista ‘Le Monde Diplomatique’, agosto de 2011.
Numa outra tradução foi também publicado na edição portuguesa de ‘Le Monde
Diplomatique’, nº 58, agosto de 2011.
___________
NOTAS:
(1) Le Monde: editorial de 1 de julho de 2011; Zaki
Laïdi, ‘Absurde démondialisation’, 29 de junho de 2011; Pascal Lamy, ‘La démondialisation est un concept réaccionaire’, 1 de julho de 2011.
(4) 'La mondialisation est-elle coupable?', entrevista com Daniel Cohen e Jacques Sapir, Alternatives
économiques, n° 303,
Paris, junho de 2011.
(5) Com os salários chineses a 100 euros
mensais, não se pode dizer que a concorrência seja desleal... Veremos o que
veremos quando a África, a 15 euros, entrar também na dansa!
(7) Patrick Artus e Marie-Paule Virard, Globalisation,
le pire est à venir, La
Découverte, Paris, 2008.
(8) Patrick Artus, ‘Ce
n’est pas le moment de refuser la mondialisation’, Flash
économie, Natixis, n°
472, 21 juin 2011.
(9) Lawrence Summers, ‘A strategy to promote healthy globalisation’, Financial
Times, Londres, 5 de maio de 2008.
(12) Walden Bello, Deglobalization:
Ideas for a New World Economy, Zed
Books, Londres-Nova Iorque, 2002. A palavra foi primeiro empregue por Bernard
Cassen em 1996: ‘Et maintenant... démondialiser pour internationaliser’, Manière
de voir, n° 32,
novembro de 1996.
(14) Jacques Sapir, La
Démondialisation, Seuil,
Paris, 2011. Cf. também, do mesmo autor, ‘S’il faut sortir de l’euro... ‘ , documento de trabalho CEMI-EHESS,
Paris, abril de 2011.
(15) ‘La démondialisation, un concept superficiel et simpliste’, por
nove membros do conselho científico do ATTAC, 6 de junho de 2011.
(16) Pierre Khalfa, 'Les impasses de la démondialisation. Réponse à quelques
contradicteurs’ , Mediapart, 20 de junho de 2011.
(17) Ibid. ; Jean-Marie Harribey, ‘La démondialisation heureuse?’, blog d’Alternatives économiques, Paris, 16 de junho de 2011.
(18) ‘La
“menace protectionniste”, ce concept vide de sens’, incluído em La
Crise de trop, Fayard,
Paris, 2009.
(19) ‘Qui a peur de la démondialisation ?’, La
pompe à phynance, Les blogs du Diplo, 13 de junho de 2011.
No hay comentarios:
Publicar un comentario