nº 14, março de 2012
Os poderes
instalados no sistema mundial estão cada vez mais à deriva, enquanto a crise do
capitalismo global serpenteia para fora do seu controlo. Desde o abate de
dezenas de jovens manifestantes, por parte do exército no Egito, à repressão
brutal do movimento Occupy nos Estados Unidos da América e aos canhões de água manuseados pela
polícia militarizada no Chile contra estudantes e trabalhadores, os Estados e
as classes dominantes sentem-se incapazes de refrear a maré de rebelião popular
no mundo inteiro e vêm-se forçados a recorrer à repressão cada vez mais
generalizada. Simplificando, as imensas desigualdades estruturais da economia
política global não podem mais ser contidas através de mecanismos consensuais
de controle social. As classes dominantes perderam legitimidade; estamos a
assistir a uma quebra da hegemonia da classe dominante em escala mundial.
Para
entender o que está acontecendo nesta segunda década do novo século, precisamos
ver o grande quadro no seu contexto histórico e estrutural. As elites globais desejavam
e esperavam que a "Grande Depressão", começada com a crise das
hipotecas e o colapso do sistema financeiro mundial em 2008, fosse uma recessão
cíclica, que pudesse ser resolvida através de resgates patrocinados pelos
Estado e por pacotes de estímulos. Mas tornou-se claro que esta é uma crise
estrutural. As crises cíclicas são episódios recorrentes no sistema
capitalista, acontecem cerca de uma vez por década e duram geralmente 18 meses
a dois anos. Houve recessões mundiais no início dos anos 1980, no início dos
anos 1990 e no início do século XXI.
As crises
estruturais são mais profundas; a sua resolução requer uma reestruturação
fundamental do sistema. Crises estruturais mundiais anteriores, nas décadas de
1890, de 1930 e de 1970 foram resolvidas através de uma reorganização do
sistema que produziu novos modelos do capitalismo. "Resolvidas" não
significa que os problemas enfrentados pela maioria da humanidade sob o
capitalismo tiveram solução, mas que a reorganização do sistema capitalista, em
cada caso, superou os constrangimentos existentes à retomada da acumulação de
capital em escala mundial. A crise da década de 1890 foi resolvida, nos núcleos
centrais do capitalismo mundial, através da exportação de capital e uma nova
ronda de expansão imperialista. A Grande Depressão da década de 1930 foi
resolvida através do recurso a variantes da social-democracia, tanto no Norte
como no Sul – um capitalismo da providência, populista ou desenvolvimentista,
que envolvia redistribuição, a criação de setores público e a regulação estatal
do mercado.
A globalização e a crise estrutural atual
Para
entender a atual conjuntura, precisamos de voltar à década de 1970. A fase de
globalização do capitalismo mundial em que agora estamos evoluiu, ela própria,
a partir da resposta dada, por distintos agentes, a estes episódios anteriores
de crise, em particular à crise dos anos 1970 da social-democracia, ou mais
tecnicamente falando, do fordismo-keynesianismo, ou capitalismo redistributivo.
Na esteira dessa crise, o capital se tornou global, como resultado de uma
estratégia da emergente classe capitalista transnacional e seus representantes
políticos para reconstituir o seu poder de classe, libertando-se das restrições
postas pelo Estado-nação à acumulação. Estas restrições - o chamado
"compromisso de classe" - haviam sido impostas ao capital através de
décadas de lutas de massas em todo o mundo, por classes populares e
trabalhadoras constituídas e situadas ao nível nacional. Durante os anos 1980 e
1990, no entanto, as elites globalmente orientadas capturaram o poder do
Estado, na maioria dos países em redor do mundo, e utilizaram esse poder para
promover a globalização capitalista por meio do modelo neoliberal.
Políticas
de globalização e neoliberais abriram vastas novas oportunidades de acumulação
transnacional, nos anos 1980 e 1990. A revolução na informática e nas
tecnologias da informação e outros avanços tecnológicos ajudaram o capital
transnacional emergente a alcançar ganhos substanciais de produtividade e a
reestruturar, "flexibilizar", e dispensar trabalho por todo o mundo.
Isto, por sua vez, debilitou os salários e o salário social, facilitando uma
transferência de rendimentos para o capital e para setores de alto consumo em
todo o mundo, proporcionando que novos segmentos de mercado alimentassem o
crescimento. Em suma, a globalização tornou possível uma expansão mais
extensiva e intensiva do sistema, desencadendo uma nova ronda frenética de
acumulação por todo o mundo, que compensou a crise dos anos 1970 com o seu
declínio de lucros e oportunidades de investimento.
No
entanto, o modelo neoliberal também resultou em uma polarização social sem
precedentes, em todo o mundo. Ferozes lutas sociais e de classe em todo o mundo
foram capazes, no século XX, de impor uma certa medida de controlo social sobre
o capital. As classes populares, em diferentes graus, foram capazes de forçar o
sistema a fazer a ligação entre aquilo a que chamamos de reprodução social e a
acumulação de capital. O que tem ocorrido, por meio da globalização, é a rotura
entre a lógica da acumulação e a da reprodução social, resultando em um
crescimento sem precedentes da desigualdade social e na intensificação das
crises de sobrevivência para milhares de milhões de pessoas, em todo o mundo.
Os efeitos
pauperizantes desencadeados pela globalização têm gerado conflitos sociais e
crises políticas que o sistema está agora achando cada vez mais difíceis de
conter. O slogan "nós somos os 99 por cento" surge a partir da
realidade de que as desigualdades globais e a pauperização se intensificaram
enormemente desde que a globalização capitalista descolou, na década de 1980.
Amplas faixas da humanidade tiveram mobilidade descendente absoluta nas últimas
décadas. Até o FMI foi forçado a admitir, num relatório do ano 2000, que
"nas últimas décadas, quase um quinto da população mundial regrediu. Este
é, sem dúvida, um dos maiores fracassos econômicos do século XX".
A
polarização social global intensifica o problema crônico da sobreacumulação.
Isso se refere à concentração de riqueza em cada vez menos mãos, de modo que o
mercado global se torna incapaz de absorver a produção mundial e o sistema
estagna. Capitalistas transnacionais acham cada vez mais difícil descarregar a
massa inchada e em expansão de seus lucros - eles não conseguem encontrar
saídas para investir seu dinheiro, a fim de gerar novos lucros; daí o sistema
entrar em recessão, ou pior. Nos últimos anos, a classe capitalista
transnacional se voltou para a acumulação militarizada, a especulação
financeira selvagem e para o ataque ou saqueio das finanças públicas, para
sustentar os seus lucros face à sobreacumulação.
Enquanto a
ofensiva do capital transnacional contra as classes populares e trabalhadoras
remonta à crise da década de 1970, tendo crescido em intensidade, desde então,
a Grande Recessão de 2008 foi, em vários aspetos, um grande ponto de viragem.
Em particular, à medida que a crise se espalhou, gerou condições para novas
rondas de brutal austeridade em todo o mundo, uma maior flexibilização do
trabalho, o aumento acentuado do desemprego e do subemprego, e assim por
diante. O capital financeiro transnacional e seus agentes políticos utilizaram
a crise global para impor uma austeridade brutal e tentar desmantelar o que
resta dos sistemas de previdência e do Estado social na Europa, na América do
Norte, e em outros lugares, bem como para espremer mais valor do trabalho,
diretamente, através de uma exploração mais intensa, e indiretamente, através
das finanças do Estado. A conflitualidade social e política tem aumentado em
todo o mundo, na esteira de 2008.
No
entanto, o sistema não foi capaz de recuperar; está mergulhando cada vez mais
profundamente no caos. As elites globais não consegem gerir as suas
contradições explosivas. Estará o modelo neoliberal do capitalismo entrando em
uma fase terminal? É crucial entender que o neoliberalismo não é senão um
modelo de capitalismo global; dizer que o neoliberalismo pode estar em crise
terminal não quer dizer que o capitalismo global esteja em crise terminal. É
possível que o sistema responda à crise e à rebelião das massas através de uma
nova reestruturação que leve a algum modelo diferente de capitalismo mundial -
talvez um keynesianismo global, envolvendo redistribuição transnacional e
regulação transnacional do capital financeiro? Serão algumas forças rebeldes
ascendentes cooptadas para uma qualquer nova ordem capitalista reformada?
Ou será
que estamos caminhando para uma crise sistémica? Uma crise sistémica é uma
crise em que a solução envolve o fim do próprio sistema, seja através da sua
substituição, com criação de um sistema totalmente novo, ou, mais preocupante,
com o colapso do sistema. Se uma crise estrutural vai ou não tornar-se
sistémica depende da forma como distintas forças sociais e de classe responderem
– depende dos projetos políticos que elas avançarem, assim como de fatores de
contingência que não podem ser previstos com antecedência, além das condições
objetivas. É impossível, neste momento, prever o resultado da crise. No
entanto, algumas coisas são claras na conjuntura mundial atual.
A conjuntura atual
Em
primeiro lugar, esta crise partilha um certo número de caraterísticas com
crises estruturais anteriores, as dos anos 1970 e 1930. Mas há também várias
características que lhe são únicas:
- O
sistema está rapidamente a atingir os limites ecológicos de sua reprodução. Nós
enfrentamos a ameaça real do esgotamento de recursos e de catástrofes
ambientais que ameaçam um colapso do sistema.
- A
magnitude dos meios de violência e controle social existentes é sem
precedentes. Guerras informatizadas, drones, bombas destruidoras de bunkers, Guerra das Estrelas, e assim por diante, mudaram a face da guerra. A
guerra tornou-se normalizada e higienizada para todos aqueles que não estão
diretamente situados no local de receção de uma agressão armada. Também inédita
é a concentração do controle sobre os meios de comunicação, de produção de
símbolos, imagens e mensagens, nas mãos do capital transnacional. Chegamos à
sociedade de vigilância panótica e do controle de pensamento orwelliano.
- Estamos
chegando aos limites para a expansão extensiva do capitalismo, no sentido de
que já não há mais quaisquer novos territórios de importância que possam ainda
ser integrados no capitalismo mundial. A desruralização está agora muito
avançada e a mercantilização do campo, bem como dos espaços pré e
não-capitalistas, tem se intensificado, convertendo-os, como estufas, em
espaços do capital, de modo que a expansão intensiva está atingindo
profundidades nunca antes vistas. Como um ciclista, o sistema capitalista
precisa se expandir continuamente ou então ele entra em colapso. Onde é que o
sistema agora irá se expandir?
- Há o
surgimento de uma vasta população excedente, habitante de um planeta de
favelas, alienada da economia produtiva, jogando nas margens, sujeita a
sistemas sofisticados de controlo social e com a sua sobrevivência
permanentemente em jogo, encerrada num ciclo mortal de
expropriação-exploração-exclusão. Isto levanta de novas maneiras os perigos de
um fascismo do século XXI e de novos episódios de genocídio para conter a massa
da humanidade excedente, em sua rebelião real ou potencial.
- Não há
uma disjunção entre uma economia globalizada e um sistema de autoridade
política com base nos Estados-nação. Os aparatos estatais transnacionais são
incipientes e não têm sido capazes de desempenhar o papel a que os cientistas
sociais se referem como o de "hegemon", nem há um Estado-nação líder
que tenha poder e autoridade suficientes para organizar e estabilizar o
sistema. Estados-nação não podem controlar os ventos uivantes de uma economia
global descontrolada; os Estados enfrentam crises cada vez mais agudas de
legitimidade política.
Em segundo
lugar, as elites globais são incapazes de chegar a soluções. Elas parecem estar
politicamente falidas e impotentes para orientar o curso dos acontecimentos que
se desenrolam diante dos seus olhos. Elas exibiram brigas e divisões nos fóruns
do G-8, G-20 e outros, aparentemente paralisados, e certamente indisponíveis
para desafiar o poder e as prerrogativas do capital financeiro transnacional, a
fração hegemônica do capital à escala mundial e também a fração mais voraz e
desestabilizadora. Enquanto os aparatos estatais nacionais e transnacionais se
abstêm de intervir para impor regras ao capital financeiro global, eles não
deixaram de intervir para impor os custos da crise aos trabalhadores. As crises
orçamentais e fiscais, que supostamente justificam cortes nos gastos e
austeridade, são inventadas. Elas são antes uma conseqüência da falta de vontade
ou incapacidade dos Estados de desafiar o capital em sua disposição de
transferir o ônus da crise para as classes trabalhadoras e populares.
Em
terceiro lugar, não haverá um desfecho rápido para o crescente caos global.
Estamos em um período de grandes conflitos e grandes convulsões. Como mencionei
acima, um dos perigo é uma resposta neofascista para conter a crise. Estamos
enfrentando uma guerra do capital contra todos. Três setores do capital
transnacional, em particular, se destacam como os mais agressivos e propensos a
buscar arranjos políticos neofascistas para forçar o prosseguimento da
acumulação enquanto esta crise continua: o capital financeiro especulativo, o
complexo militar-industrial-securitário e o sector extrativo e energético. A
acumulação de capital no complexo militar-industrial-securitário depende do
surgimento de infindáveis conflitos e guerras, incluindo as guerras ditas
contra o terrorismo e contra as drogas, bem como da militarização do controle
social. O capital financeiro transnacional depende da assunção do controle
sobre as finanças estaduais e da imposição da dívida e da austeridade às
massas, finalidades que, por sua vez, só podem ser alcançadas através de uma
repressão crescente. E as indústrias extrativas dependem de novas rondas de
expropriação violenta e de degradação ambiental ao redor do mundo.
Em quarto
lugar, as forças populares em todo o mundo passaram, mais rápido do que
qualquer um poderia ter imaginado, da defensiva à ofensiva. A iniciativa
passou, claramente, neste ano de 2011, da elite transnacional para as forças
populares, a partir de baixo. O rolo compressor da globalização capitalista,
nos anos 1980 e 1990, tinha revertido a correlação de forças sociais e de
classe, ao nível mundial, em favor do capital transnacional. Embora a
resistência continuasse em todo o mundo, as forças populares se encontraram
desorientadas e fragmentadas, nessas décadas, sendo empurradas para a defensiva
no auge do neoliberalismo. Em seguida, os acontecimentos de 11 de setembro de
2001 permitiram que a elite transnacional, sob a liderança do Estado dos
E.U.A., sustentasse a sua ofensiva com a militarização da política mundial e
com o alargamento dos sistemas de controle social repressivo, em nome do
"combate ao terrorismo".
Agora tudo
isso mudou. A revolta global em curso mudou toda a paisagem política e os
termos do discurso. As elites mundiais estão confusas, reativas e afundadas num
pântano da sua própria criação. Vale a pena ressaltar que aqueles que lutam, em
todo o mundo, têm se mostrado um forte senso de solidariedade e estão em
comunicação entre si através de continentes inteiros. Assim como a revolta
egípcia inspirou o movimento Occupy, este último tem sido uma inspiração para uma nova ronda de luta de
massas no Egito. O que falta é expandir a coordenação transnacional e avançar
para programas transnacionalmente coordenados. Por outro lado, o império do
capital global não é, definitivamente, um "tigre de papel". Enquanto
as elites globais se reagrupam, avaliando a nova conjuntura e as ameaças de
revolução de massas global, elas vão - e já o começaram - organizar a repressão
de massas coordenada, novas guerras e intervenções, bem como mecanismos e
projetos de cooptação, em seus esforços para restabelecer a hegemonia.
A única
solução viável para a crise do capitalismo global é uma maciça redistribuição
de riqueza e de poder, para baixo, para a maioria pobre da humanidade, de
acordo com as linhas de um socialismo democrático do século XXI, no qual a
humanidade não esteja mais em guerra consigo mesma nem com a natureza.
(*) William I. Robinson é um académico norte-americano,
professor de Sociologia na Universidade da California, em Santa Barbara. Nos
anos 1980 trabalhou como jornalista na Nicarágua assolada pela guerra e pelo
terrorismo imperialista, tendo-se mantido desde então um observador e analista
de questões latinoamericanas. Tem estudado também economia política e
transnacionalização, notabilizando-se por defender a tese da existência de uma
classe capitalista globalizada. Entre os seus livros publicados merecem destaque: Promoting Polyarchy: Globalization, US
Intervention, and Hegemony, Cambridge [Inglaterra]:
Cambridge University Press, 1996; Transnational
Conflicts: Central America, Social Change and Globalization, Londres: Verso, 2003; A
Theory of Global Capitalism: Transnational Production, Transnational
Capitalists, and the Transnational State, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2004; Latin America and Global Capitalism: A
Critical Globalization Perspective, The
Johns Hopkins University Press, 2008. Tradução de Ângelo Novo
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